Palavras no branco – Eduardo Bettencourt Pinto

Fonte: Palavras no branco – Eduardo Bettencourt Pinto

 

Uma voz entre a chuva

As pessoas falam
saem. As paredes ficam.
Cinquenta e seis poemas

Fernando Martinho Guimarães

/Eduardo Bettencourt Pinto

Os textos de Manuel Cabral, agora reunidos em livro e cujo título é África em mim, apareceram inicialmente na sua página do Facebook. Os seus amigos (suponho que a maioria deles angolanos) receberam-nos com aplauso. Foram muitos os comentários, afectuosos e encomiásticos, sugerindo que os publicasse em livro.

O desafio cresceu e tomou-se de urgências. Para MC foi um caminho novo a explorar. Estaria, contudo, o autor de textos tão honestamente íntimos e evocativos de um tempo angolano, marcante e indelével, preparado para enfrentar a edição das suas memórias? Teria, claro, de ter em conta que a publicação de um livro tem os seus riscos. Em tempos como estes, de padrinhos e madrinhas, amiguinhos e amiguinhas nos sítios certos, é difícil penetrar na difícil floresta da literatura sem qualquer tipo de apoio. A sua determinação, porém, mitigou-lhe os óbices: tratou ele mesmo da sua publicação.

África em mim, uma edição de autor, junta 15 textos, escorridos e memorialistas ao longo de 51 páginas que se leem de um fôlego. Se nos fica a sensação de ser pouco, não é por ser questionável a qualidade dos textos. São bem redigidos, de pulso seguro e atento às regras da língua. Aqui e ali notam-se os alicerces de um fulgor criativo que revela a desenvoltura semântica de quem exige das palavras algo mais do que um mero veículo de comunicação de factos e sentimentos. Exatamente por reunirem estas características (o gosto de narrar e a integridade da escrita), se tornam mais visíveis, mais aparentes, os traços da sua economia. Queremos ouvir com mais profundidade o rumor líquido das palavras, conhecer melhor o caráter e a alma daqueles que aparecem nestas páginas sob os traços coloridos do seu afeto, filtrados pela melancolia da sua irremediável ausência. O autor evoca-os com a serenidade e o calor de quem dignifica com o seu abraço emocionado aquelas figuras de relevo que povoaram o seu passado, mormente os pais no seu quotidiano no Sul de Angola, na luta pela vida, nada fácil. São pessoas humildes, honestas no seu modo de vida, retratadas no seu microcosmo com teor rural e em cujo mito africano se contextualiza a sua expansibilidade.

Manuel Cabral pertence à «última geração» de angolanos brancos, aquela que abraçou uma angolanidade muito mais abrangente do que as gerações anteriores, por via das vivências descomplexadas que se desenvolveram, desde a convivência nos bancos da escola entre brancos, negros e mestiços, até às posições profissionais. Não era uma situação ideal mas um princípio. Muito havia ainda por fazer. Convém no entanto recordar que estávamos sob o controlo de um regime prepotente, e que nos amordaçava a todos desde Lisboa cujos tentáculos abrangiam com furor todas as «províncias ultramarinas», consideradas, como se sabe, território nacional. Infelizmente, com o golpe de estado de Abril, veio o caos. Os responsáveis foram muitos, desde o Governo de transição em Portugal, que lavou as mãos nas águas sujas da História e abandonou Angola, vulnerável agora ao desencontro ideológico dos três movimentos, MPLA, UNITA e FNLA, que passaram a um regime de conflito com vista a obterem o poder sob o canto mortífero das armas. Violência generalizada, total impunidade nos crimes perpetrados, fuga em massa daqueles que podiam escapar ao clima de guerra, por terra, pontes aéreas e pelo mar, enquanto a influência estrangeira se ia fazendo notar com os seus conselheiros e estrategas de guerra, a soldados, armamento e o mais que a loucura desenfreada daqueles tempos foi capaz de engendrar.

Como tantos outros, MC, que nasceu no Sul de Angola, viu-se forçado a abandonar a terra natal em 15 de Agosto de 1975 em virtude da guerra civil, agora generalizada. Radicou-se com a família em Portugal continental, com excepção dos cinco anos que esteve nos Açores (Ponta Delgada), entre 1978 e 1983, exercendo o professorado à noite enquanto tirava a licenciatura na Universidade dos Açores. Foi professor durante 35 anos. Abandonou a profissão em 2012, desmotivado com o ensino por lhe parecer ter entrado em degradação. Há 44 anos que vive em Portugal. Abraçou o país como seu, integrou-se. No entanto, nunca perdeu o grau de intensidade em relação ao seu passado africano, recordado nestas páginas com a mais comovente eloquência e magnanimidade.

Filho de pais angolanos (o pai nasceu na Chibia em 1900 e a mãe no Lubango em 1913, ambos de raízes madeirenses), Manuel Cabral cresceu sob a influência telúrica e social angolana. Sensível e atento, empático e responsável, cedo compreendeu as dificuldades que os pais enfrentavam na luta diária por uma vida condigna e sustentada pelos inalienáveis valores da honestidade. Inteligente e sequioso pelo saber, agarrou-se aos estudos com determinação. Fez dos anos escolares uma passagem empenhada em crescer intelectualmente com vista ao seu enriquecimento pessoal.

A figura materna ocupa um polo luminoso, um halo central e emblemático na maneira como a recorda: «A minha mãe casou-se aos quinze anos de idade e teve dez filhos. Tinha olhos azuis, cor que nenhum filho herdou e que todos gostariam de ter, não por serem azuis mas por ser a cor dos seus olhos». A beleza destas palavras e destes sentimentos coadunam-se com o seu perfil de humanista, de órfão de pais e de uma terra que não viu, por infortúnio, ver crescer como um país.

O seu empenho nestes belos e sentidos textos é mais do que um exercício sentimental. É a afirmação serena de um passado quantas vezes hostilizado por vozes ignorantes e racistas e em cuja hostilidade se espraia a arrogância perante aquilo que se desconhece. O autor sabe isso, viveu essa experiência de acusações fúteis e insensíveis perante aqueles que partiram de África, não só traumatizados com todo o processo de descolonização que descambou no caos, mas também pela situação de penúria e injustiças várias em que caíram devido a tudo isso.

A sua nota introdutória é um pedido a todos aqueles que, como ele, nasceram em Angola: «Fica o desejo de que outras vozes se façam ouvir com outras histórias para que surja uma visão nova e mais justa sobre tempos ensombrados pelos condicionalismo da História».

Chegamos pois a uma altura cada vez mais pertinente para que se desmistifiquem equívocos ainda persistentes, e com a serenidade e o calor desta voz, agora a ouvir-se entre o sussurro sombrio dos dias.

O triunfo da obscuridade

/Eduardo Bettencourt Pinto

Penso muitas vezes nesta frase, carregada de simbolismo, de um verso do poeta Mahmoud Darwish: “Não perguntámos por que razão o homem não nasce das árvores por forma a renascer na Primavera”.

A vida das árvores não é eterna, ao contrário da terra e das pedras. O poeta, o grande poeta, sabia isso. Darwish buscava a transformação do ser, uma génese renovada dentro dos limites da efemeridade que nos cerca desde que nascemos. Estamos condenados ao inevitável. Ele acreditava na necessidade da renovação do homem, tão vulnerável ao declínio físico e espiritual. Mahmoud Darwish desejava que o outono humano não fosse o prelúdio do seu fim mas o início de um novo ciclo existencial, limpo, puro, fresco e sem mácula. “As nossas ruínas estão adiante de nós e para trás estão os nossos absurdos objectivos” frisa lapidarmente no mesmo poema.

Chegámos ao declínio dos tempos? O materialismo desenfreado, a sede de exibição e protagonismo tão evidentes nas redes sociais, a decadência ética e moral dos líderes políticos (e até religiosos), a corrupção desenfreada, tanto em países desenvolvidos como nos do terceiro-mundo, desde ao nível governamental ao privado. Se tudo isso não bastasse, estamos agora perante o estranho e preocupante fenómeno que se levanta das massas alegremente radicais. Abraçadas com fervor a ideologias de direita, ressuscitam nacionalismos perversos e intolerantes inspirados nas páginas mais indignas da História. São elas, bem vistas as coisas, os responsáveis pela eleição de figuras indescritíveis e perigosas como Donald Trump, Putin, Robert Mugabe e tantos outros. Se tudo isto não indica um caminhar para o fim, demonstra pelo menos um enorme e preocupante retrocesso civilizacional e ideológico.

Como parar esta corrida para o absurdo? Está perto o abismo? Trata-se, claro, de uma questão que nos ultrapassa. Mas pelo menos sabemos que estamos demasiadamente divididos entre nós e os outros. No fundo, somos uma entidade egoísta, decadente e susceptível. Assusta-nos o que é diferente e que não vai ao encontro do nosso imaginário colectivo. Fazemos disso um argumento justificador da nossa incapacidade em aceitar e compreender os outros, aqueles que não se parecem connosco fisicamente, ou no vestir, na cor da pele, na pronúncia, na língua e nos costumes culturais.

Vivemos tempos de uma grande vulnerabilidade. O nosso planeta arde no Verão; no Inverno afoga-nos com chuvas diluviais. Atrás fica um cenário confrangedor de destruição e caos como aquele que aconteceu recentemente em Moçambique. À mistura, tremores de terra e tsunamis. Grande parte disto acontece como consequência da intervenção humana, da sua insensatez, da ambição desmedida e controladora de poderosos lóbis financeiros que vão sorrateiramente assenhorando-se e destruindo os nossos recursos naturais e alterando o curso natural do meio-ambiente. Um presidente desmiolado, como foi George Bush, pode, num repente, virar tudo isto do avesso. Se uma pedra na mão de um imbecil pode resultar numa calamidade, na de um artista uma obra de arte. Assim é a natureza humana. Ninguém a pode mudar. Líderes destes, pois, como Bush, megalómanos, acéfalos e moralmente ignóbeis, continuam a deixar atrás de si um incrível rasto de destruição numa euforia criminosa e sem consequências como foi a invasão do Iraque. “A guerra do Iraque não foi uma tragédia. Tem os contornos de um crime, resultado da incompetência boçal daqueles que orquestraram uma guerra de prevenção, compreensivelmente ilegal, numa atmosfera de pânico em sequência das ocorrências do 9/11”*. Li isto recentemente no The New York Times num texto de Andrew J. Bacevich.

A renovação do homem só pode acontecer com uma nova trajectória espiritual. A humanidade corre desenfreadamente para a escuridão. Estamos a ficar politicamente cegos. Não vemos onde se afundam os nossos sonhos, os nossos pés. Cobre-nos a neblina da indiferença. O que importa é o que se passa no ecrã dos telemóveis, à distância, alheios que estamos a tudo o que passa ao nosso redor. Passamos a viver de olhos postos no frenesi dos “likes”, nos relatos públicos onde choramos e rimos tão abertamente que não há mistério que reste de nós. Sentados à mesa do mundo virtual, damos conta do nosso apetite algures numa praia solar. Aos que estão perto, no entanto, não abrimos a porta da nossa casa.

Viva a impassível glória do absurdo.

* Tradução livre.

Instantaneus

bulbs/Eduardo Bettencourt Pinto

Guardar na terra

Teodoro, o esquilo, passa a correr, a cauda no ar. É ligeiro. Trepa pela cerca, seguro como se estivesse no chão, e logo desaparece. Vive escondido entre os áceres. Tem pêlo negro, sadio, e olhos brilhantes como duas pedras preciosas. Sinto por ele o carinho que nutro pela fresca brisa do Estio quando o ar, insuportável e quente, me derruba até à exaustão. Há uma frescura imensa neste pequeno ser, no seu rumor de silêncio, na fragilidade e na graça do corpinho. Vem com a nobre missão de plantar amendoins entre as plantas do jardim. É precavido, frugal, e de boa memória.

Volta sempre. Lança as mãozinhas à terra com a subtileza de um lavrador de sonhos e cava com infalível pontaria até reaver o tesouro que deixou em dia de abundância. Descasca o amendoim sentado, atento a tudo ao seu redor. Come sempre da mesma maneira, urgente, como se fosse a última coisa que estivesse a fazer neste mundo.

Nem todos os vizinhos gostam dele.

Fay, de óculos escuros, levanta o braço num gesto de confrangimento.

Não gosto desses bichos! – diz. – Não passam de ratos, inconvenientes e sujos. Repare nas cascas que ele deixou atrás. Devíamos correr com eles à vassourada.

Ao encontro da memória

Em noites brancas oiço, perto, os coiotes. Quantas vezes penso levantar-me, pegar numa lanterna, ir ao seu encontro. Mas as noites, por esta altura do ano, são frias. Não apetece sair da cama quente. Também não posso garantir que os veja. Eles são a noite. Movem-se no escuro como ninguém, vogam sobre a escuridão.

Minha mãe ouvia o farejar das hienas junto à porta. Seria imprudente ir espreitar, o meu pai ausente na Gabela, nós, os meninos, na idade ainda dos frutos verdes. Estávamos no Sul de Angola. Corriam, lentos, os anos cinquenta.

Oiço os coiotes, plangentes, na penumbra do meu quarto. Chove devagarinho e tarda a Primavera.

Acendo a luz do candeeiro e verifico as horas. Até ao amanhecer, vai levar muito tempo. Pego num livro. Minha mãe no pensamento, as Salinas, as hienas. Agora os coiotes, a noite branca, funda, o irresistível, incontornável sentimento de nostalgia aquecendo-me como um cobertor.

Altivez

Choramos ao nascer porque chegamos a este imenso cenário de dementes.
William Shakespeare

A cor das árvores parecia ter saído de uma tela de Matisse. O homem, sentado na esplanada, partilhava a mesa com outro. O seu olhar vagueava pelos grupos dispersos à sua volta. Não lhe interessava o fulgor, a extraordinária beleza dos jacarandás (jacaranda mimosifoli). Observava, muito atento, as outras mesas. Era um homem pequeno, ombros femininos, muito penteado. Tinha ares de juiz sentado numa poltrona faustosa. Os olhos, iluminados pela fosforescência da tarde, brilhavam de cinismo por trás das lentes dos óculos.

Nunca vi tanto escritor menor à minha volta – disse para o amigo.

Os lábios, muito finos, desenharam um sorriso de escárnio entre duas pequenas rugas nos cantos da boca.

O outro anuiu com um gesto de cabeça, levantando o copo de cerveja.

Não podia concordar mais…

O escritor, o grande escritor, antes de juntar as mãos pequeninas para as esfregar uma à outra, virou a sublime cabeça na direcção do solícito empregado. Por entre os dentes desalinhados sibilou, mais uma vez, a voz fininha como se estivesse a dar ordens a um cachorrinho:

Traga-me outro Chivas com duas pedras de gelo.

O cordeiro

Andei às voltas e não consegui encontrar o laboratório. Decidi entrar num restaurante. Talvez soubessem.

De pé, junto ao balcão, um cliente. Por trás, a jovem empregada que o atendia. Reparei numa senhora de meia-idade ao fundo. Dirigi-me a ela.

Boa tarde. Preciso apenas de uma informação. Pode indicar-me por favor onde fica o Lab?

Ela fixou-me um olhar vazio e não respondeu.

Nesse momento saiu da cozinha um homem idoso. Devia ser o marido. Repeti a pergunta.

Quer lamb? – disse.

Ouve mal, pensei.

Disse-lhe que não. Queria apenas saber onde ficava o lab. Voltou a responder-me com a mesma pergunta.

Em inglês, lab (diminutivo de laboratório) e lamb (cordeiro) são palavras homófonas e fáceis de confundir, sobretudo para quem não conhece bem a língua.

Desta vez, porém, a rapariga que servia o freguês interveio. Pareceu-me ser a filha do casal de emigrantes. Achei ser mais eficaz não usar o diminutivo.

Estou à procura do l-a-b-o-r-a-t-ó-r-i-o onde se tiram análises. Disseram-me que fica por aqui. Sabe onde é?

Ela olhou para mim como se eu tivesse dito um disparate. Frustrado, estava decidido a ir-me embora. Foi o cliente, porém, que ao ver-me enredado nesta confusão linguística e sem remédio me explicou onde era o local.

Respirei fundo ao abrir a porta. Saí para uma Primavera chuvosa mas já com a ternura de uma magnólia a florir no passeio.

A menina que envelheceu

Nunca me senti só. Gosto de estar comigo mesmo. Sou a melhor forma de entretenimento que posso encontrar.
Charles Bukowski

As mãos, pequenas, são frágeis como as de uma menina que parou de crescer logo a seguir à infância. Absorta, brinca com o guardanapo.

Após o jantar, esvaziou-se a sala. Só ela permanece à mesa, numa lassidão inescrutável.

Os vidros da janela estão húmidos da chuva. Está vento. Um frio desagradável mantém o jardim, para onde ela olha, vazio.

Estou à espera da minha mãe – diz-me em italiano. – Vem por ali –, e aponta o corredor que ladeia o prédio em frente.

Começa a escurecer nos seus olhos.

Acaba ali os dias, sentada numa cadeira de rodas e sob o enorme peso da velhice.

Quando ali chegou, passava o dia a andar pelos corredores de mala na mão. Depois as pernas abandonaram-na e a sua longevidade minguou-lhe o corpo e a mente. Mistura com frequência inglês e italiano numa dicotomia ininteligível.

Isabella guarda nas mãos o rumor de flores murchas.

Tento imaginar que história de vida se esconde na sua figura de sombra. Imóvel, alheia, absorta, é uma irradiação que subitamente perdeu o fulgor. Contra a janela que escurece, a silhueta dos seus cabelos brancos vai-se tornando mais visível contra o rubor do céu.

Não tardará a apagar-se de encontro ao vazio.

Onde estás, Bárbara?

Quando passo por ele, sentado na cadeira de rodas, paro e tento conversar um pouco. Tem olhos azuis, de um azul sem nuvens, e expressão de menino perdido no Tempo.

O rosto ilumina-se com a brevidade de um raio de luz. Pergunta, triste, triste, como se o mundo tivesse acabado aos seus pés:

— Estou à procura de Bárbara, a minha mulher. Não sei onde está. Viu-a?

Já vi a sede de um rio correr pela terra, a curva longa do adeus num gesto de despedida. Já vi homens pobres com montanhas às costas, uma pedra a cantar no alvor da Primavera. Mas nunca vi, até agora, um homem chorar assim, olhos secos, as mãos vazias, cheias de uma vida rente ao pó.

— Bárbara, Bárbara! Onde estás, Bárbara?

Há um homem com o teu nome na boca, no coração, na garganta, nas veias e nas pernas mortas como as areias do deserto.

Responde, Bárbara. Onde estás, Bárbara?

Frank e Dan: A alegre e descomprometida viagem pela vida

glass/Eduardo Bettencourt Pinto

Fui ao aeroporto buscar o Frank. Chegou com o sorriso de um pescador feliz, a pele escurecida pelo sol da Austrália, sandálias de borracha, o longo cabelo grisalho apanhado numa trança e a camisa aberta como se tivesse aterrado na praia. Nos olhos, porém, dançavam ainda as sombras de uma palmeira.

– Não vens preparado para o Inverno – disse-lhe enquanto nos dirigíamos para o carro.

Frank é um optimista. Respondeu-me como tal:

– Eu sei. Não te preocupes: tenho algumas camisas. É apenas uma questão de vesti-las umas em cima das outras.

Estava vento. Um céu de nuvens cinzentas, baixas, capitulavam, exangues, sob a irremediável pressão de um horizonte de chumbo. Ao lado dele, casaco grosso, luvas e cachecol, eu parecia estar a acompanhar um frugal e austero ser de outro planeta.

Frank não é um contestatário. Tão-pouco desses sujeitos que julgam iludir o crepúsculo da vida actuando com a insensatez de adolescentes rebeldes, supondo retardarem assim o relógio biológico. Ele não vive à margem da sociedade. Trabalha, paga impostos. Socializa. Tem amigos. Pode, em princípio, ser tido como um romântico mas não é. Ser-lhe-ia impensável, por exemplo, observar o brilho das estrelas nas longas noites das suas vigílias, deitado placidamente na rede da sua preguiça, estrategicamente presa a duas palmeiras perto do mar. Nem o rumor marinho lhe suscita poemas platónicos. O seu modo de vida é o reflexo de uma filosofia própria, vincada pela intensa necessidade de ser livre. Vive sem protagonismos e exibições de carácter estapafúrdico. Tanto se lhe dá dormir numa cama confortável de um hotel de luxo, como num banco de aeroporto. Adormece com alma de viajante, tranquilo e feliz, indiferente aos olhares furtivos e julgadores dos inconsoláveis cínicos deste mundo. Defende que os preconceitos são essa coisa funesta que tanto oprimem quanto limitam o livre curso da espontaneidade. Frank é um pássaro sem asas. Voa no chão, entre o fulgor do sol e da lua.

Vai para a Austrália todos os Invernos. Cultiva legumes e vende-os nas feiras de sábado, tagarelando com os clientes, assobiando, o boné com a pala virada para a nuca, feliz da vida. Regressa a casa como os pragmáticos gansos canadianos, vindos das migrações anuais pelas terras quentes dos Estados Unidos para se refugiaram do frio. Como eles, Frank é um errante organizado. Mas não é o único que conheço.

Há anos atrás, em Puerto Vallarta, conheci um americano que partilha, de uma certa maneira, o mesmo estilo de vida do Frank.

Estávamos alojados no mesmo hostel, um lugar modesto perto do centro. Apareceu à mesa do pequeno-almoço muito solto nos seus largos calções vermelhos, caídos sobre os joelhos, T-shirt sem mangas, o cabelo loiro, comprido, a escorrer-lhe pelas costas numa linha fina e cintilante. Cordial, prestável e muito educado, o Daniel salientava-se dos restantes hóspedes pela sua afabilidade e gosto em conversar.

Almoçámos uma ocasião, e por acaso, num restaurante perto da catedral. Observava as pombas ociosas através dos vidros quando uma voz me acordou da minha letargia. Era o Daniel.

– Posso sentar-me?

O restaurante fervilhava com turistas e clientes locais num assalto contínuo às mesas. A televisão, uma caixa ruidosa, atirava-nos aos ouvidos o tédio e a rouquidão de vozes ininteligíveis. Hora de bulício e telenovelas. Olhares mexicanos, virados para o tecto, absorviam-nas com indecifrável interesse. Em qualquer lugar do mundo, a noite de vidas apagadas parece ganhar claridade e objectivo na ilusão de outras vidas, mesmo que fictícias e irreais.

Alheio a tudo isso, Dan recebeu com renitência o cardápio que a jovem empregada lhe estendeu. Limpou-o com repulsa ao guardanapo.

– Se não fosse pela inconveniência, passava a andar de luvas de borracha. O mundo é uma coisa suja. Detesto a sensação do suor dos outros nas coisas.

Achei a observação estranha. A ementa, impressa a letra de computador e protegida do contínuo manuseamento público por uma capa transparente de plástico, não suscitava reservas quanto à sua limpeza. Daniel, no entanto, parecia ter olhos microscópicos. Sondava os outros com a insistência febril de um nefelibata em devaneio delirante, à cata de micróbios e de outras bactérias nefastas que o pudessem eventualmente molestar. Recusava apertos de mão, efusivos ou de circunstância, guardando sempre alguma distância entre ele e os outros.

Daniel vivia na Califórnia numa velha carrinha. Andava de lugar em lugar como o vento, sustentando-se de biscates. Pela tarde estacionava-a na praia para desfrutar do mar e do horizonte aberto do céu.

Volvidos alguns anos sobre esse encontro, constato que Daniel continua o mesmo. Leio com frequência os seus comentários nas redes sociais, quase sempre acompanhados de fotografias. A sua irreverência mantém-se intacta como naquela tarde sem nuvens de Puerto Vallarta, o seu olhar de pombo a voar sobre a parca lista do almoço, testa franzida, a luz da rua a bater-lhe de lado e a deixar no chão uma sombra cálida e insondável.

Tanto o Frank como o Daniel não têm vidas extraordinárias. Nem as suas opções se coadunam com os valores e a ética da maioria de nós. Convenhamos que o ser humano não é uma rocha no meio do mar. Precisamos uns dos outros para nos sentirmos vivos, menos sós, para dar e receber afecto, crescer intelectualmente. No entanto, essa espécie de irreverência que ambos praticam tem o seu lado poético. Alimenta-se de um minimalismo existencial sem redes nem preocupações atávicas, como uma planta selvagem que surge, solitária, na imensa paisagem dos dias e que se mantém intacta e firme até ao fim.

Nem todos querem seguir o modelo de existência que lhes foi dado à nascença. Nem todos vivem presos à parede ancestral, fechados, quantas vezes, na melancolia daquilo que é confortável e previsível. O desejo de aventura sobrepõe-se a tudo. Arrasta-os para a estrada, convida-os para o caminho sinuoso do mistério numa entrega absoluta, total, insuprimível.

Seguir pela cauda do vento desprovido de bússola, e ao sabor do imprevisto, poderá ser visto como uma forma egoísta de não assumir quaisquer responsabilidades afectivas. Mas quem pode descodificar a insaciável necessidade do ser humano em tentar, na medida da sua visão da vida, reinventar a efemeridade? Talvez seja isso o que o Frank e o Daniel nos queiram demonstrar.

Eufeme, com o calor do lume

eufeme-2-capa_2/Eduardo Bettencourt Pinto

Esta Eufeme a que me refiro não é a deusa da mitologia grega. Trata-se de uma revista de poesia que se publica no Porto, cujo número 2 saiu em Janeiro de 2017. O editor e coordenador é o poeta Sérgio Ninguém. Estão aqui representados dezassete poetas. A saber, e por ordem alfabética: Amadeu Baptista, Aram Saroyan (americano, traduzido por Francisco José Craveiro de Carvalho), Eduardo Bettencourt Pinto, Eduardo Quina, Filipa Leal, Francisco Cardo, João Rasteiro, Jorge Batista de Figueiredo, José Carlos Costa Marques, Luís Quintais, Miguel-Manso, Nuno Dempster, Pedro Jubilot, Rafael Courtoisie (uruguaio, traduzido por Francisco José Craveiro de Carvalho), Rosa Alice Branco, Rui Tinoco e Sandra Costa.

Numa altura em que a poesia anda descalça pelo alheamento das modas literárias vigentes, tão viradas para a sordidez de um mercado quantas vezes imediatista e movido a bolhas de ar, uma revista deste calibre, com esta elevada qualidade estética e de conteúdo, é motivo para uma efusiva celebração. Desde a escolha do papel, um regalo nas mãos, ao grafismo, sóbrio e de bom gosto, tem-se consciência de se estar perante um objecto de qualidade e que nos estimula os sentidos: Arte na apresentação, arte igualmente nos conteúdos.

Uma iniciativa destas, sobretudo nos tempos que correm, de maus ventos económicos, é um arrojo de grandes proporções. Só um espírito livre, empenhado e com elevado sentido de missão em prol da poesia, consegue efectivamente dar corpo a um projecto desta envergadura. As modas estão contra, os muros dos lobbies são altos e de renhida resistência, os tiques proliferam sob a cantata desordenada do poder de quem impõe as regras do mercado. Eufeme respira poesia de página a página na solitária e nobre missão de divulgar poetas não só de Portugal como estrangeiros, num convívio salutar e aberto, cuja faceta é a de nos oferecer perspectivas e sensibilidades várias, numa partilha de elevada qualidade.

Longe vão os anos da utopia. Houve um tempo, um tempo luminoso em que se davam as mãos, a poesia saía à rua aos gritos e rolava livre pela relva das cidades e pela luz dos campos. Portugal, nos anos setenta, explodia de vitalidade. Era um país de poetas, e foram eles aliás que construíram em uníssono uma nova madrugada. Múltiplas e significantes eram as iniciativas editoriais. Foram os anos da minha juventude em que observei a solidariedade converter um pequeno país europeu numa chama de alegria e promessa. Veio entretanto a máquina do consumismo desenfreado estabelecer novas regras, corromper o espírito de um tempo que vingava pelo seu dinamismo, abnegação e sentido de grupo. O individualismo, o culto da personalidade, a morte das ideologias, todo um leque de nefastos tiques engendraram este circuito (circo) de comportamentos cuja essência rodopia em volta do umbigo, acabando por minar o que de bom existia no mundo das letras.

O lugar da poesia é de facto o coração do homem. Só alguém com a sensibilidade de Sérgio Ninguém, também ele poeta de elevados recursos, poderia de facto «atirar-se» ao mundo com tanta abnegação, com tanto empenhamento. É um esforço admirável, titânico e que nos comove pelo seu empenhamento, altruísmo e generosidade. Um projecto que merece todo o nosso aplauso e apoio.

Sítio da revista: eufeme.weebly.com

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