Os pais da Miss Portugal

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POSTAL DO DIA
Os pais da Miss Portugal
1.
Algures em Palmela, numa casa de classe média, vivem os pais de Marina Machete, a Miss Portugal.
Não sei nada sobre ele.
Mas sei tudo sobre eles.
Não sei como se chamam, se ela é Maria e ele José, se ela é alta e professora ou se é baixa e trabalha num centro comercial, se ele é trolha ou engenheiro civil.
Mas sei de muito do que têm dentro de si.
Não sei como festejaram a vitória da filha no concurso, se foram jantar fora no dia seguinte, se choraram ou ficaram sem jeito.
Mas sei que festejaram e se orgulharam da sua pequenina Marina que há 28 anos foi batizada com nome de rapaz por ter nascido com uma pilinha.
Não sei como reagiram ao ler as declarações de Joana Amaral Dias, inacreditavelmente psicóloga, desconheço o tamanho da sua revolta, se tentaram fazer alguma coisa ou se se limitaram a encolher os ombros e a seguir em frente.
2.
Algures em Palmela vivem os pais da menina que nasceu com nome de rapaz.
Os pais que a viram desde criança a brincar com as bonecas e as roupinhas da mãe.
Os pais que durante muitos anos ficaram sem saber o que fazer, o que dizer, o que pensar.
Olhavam para o seu filho, mas viam uma menina.
E ela dizia-lhe, disse-lhes sempre a verdade.
Os pais que a viam ir para a Escola Secundária Sebastião da Gama, em Setúbal, que sabiam bem o que ela sofria em muitos fins de tarde, o que chorava em tantas manhãs por ter medo de ser atacada e humilhada.
Os pais que a tiveram de segurar quando foi apedrejada à porta da escola, como li no perfil escrito pela jornalista Raquel Lito, na revista Sábado.
O que a tiveram de conter com os gritos que a sua filha ainda trazia na cabeça
– Paneleiro
– Bicha
– Travesti de merda
3.
Algures em Palmela moram os pais da Marina, orgulhosos da vitória de uma filha que andou tanto para aqui chegar.
Que adolescente, com o seu apoio e presença, começou a ter consultas periódicas no Hospital Santa Maria.
Os pais que não sabendo o que pensar estiveram sempre com ela e a sua vontade de viver sem medo, sem ter de esconder.
Consulta atrás de consulta, teste atrás de teste, uma equipa multidisciplinar concluiu que a Marina era mesmo Marina, que não havia qualquer tipo de dúvida que a operação de mudança de sexo precisava de ser feita.
E foi realizada em Coimbra, com eles presentes.
Com eles cheios de medo e esperança que tudo corresse bem.
4.
Não conheço o nome dos pais da Mariana.
Nem conheço o nome que a Marina tinha antes de ser ela própria, mas sei que dois dias depois de fazer 18 anos, algumas horas após a operação, ela e os pais foram ao Registo de Almada mudar o nome no Cartão de Cidadão.
Escolheu Marina por ser em frente ao mar que desabafava quando não tinha ninguém par desabafar.
Uma operação feita há dez anos.
Que lhe permitiu ser o que é.
Afirmar-se como mulher aos olhos do mundo.
Ser chefe de cabine numa companhia aérea, ganhar um concurso de beleza e sonhar todos os dias com a primeira manhã em que acordará com um bebé nos braços.
Marina concretizará então todos os sonhos que tinha para si – por adoção ou por barriga de aluguer um dia será mãe.
E eles, pai e mãe que não conheço, pai e mãe com uma casa de classe média em Palmela, poderão ser avós babados da sua menina, do seu orgulho.
O mesmo orgulho que sinto por eles, mesmo sem os conhecer.
Pais que estiveram à altura, que ampararam e foram rede.
Muitos parabéns.
A vitória foi vossa e não é a vitória da Miss Portugal que conta.
É a vitória contra a ignorância e a maldade.
LO
(da página do Facebook de Luís Osório).
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Luis Almeida Pinto

Sabes, Carla Gomes, o que me impressiona mais é que o preconceito subjacente às tuas afirmações venha de uma jurista, que intencionalmente pretende ignorar o que está consignado na Lei 7/2011, e em todos os preceitos constitucionais portugueses que estabelecem o direito à realização pessoal, igualdade e ao respeito pelos direitos individuais fundamentais e da condição humana.
Mas isso, infelizmente, é uma luta que a sociedade portuguesa vai ter que fazer diáriamente, como já fez anteriormente relativamente à consagração do divórcio, da interrupção voluntária da gravidez, do reconhecimento da homosexualidade, do casamento entre pessoas do mesmo sexo, da adopção por casais do mesmo sexo, e várias outras situações em que se optou legalmente pela Realização e Felicidade das pessoas, em detrimento da perpetuação de preconceitos Velhos e bolorentos, de raiz social ou religioso.
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Sobre CHRYS CHRYSTELLO

Chrys Chrystello jornalista, tradutor e presidente da direção da AICL
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