o medo de voar

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2 d
MARTA
Há ocasiões, e não são poucas, em que um Comandante de avião tem que se desdobrar em múltiplas tarefas que vão muito para além das responsabilidades inerentes ao voo tais como, por exemplo, fazer de “pai”. Passo a explicar.
Era um voo do Rio de Janeiro para Lisboa em Airbus A340, como habitualmente “a rebentar pelas costuras” em número de passageiros. Completamente cheio, cerca de 300 almas a bordo. A partida acontecia ao fim da tarde e estava-se em pleno verão (Janeiro ou Fevereiro) do hemisfério sul pelo que podíamos ver ao longe a habitual linha de cumulonimbus (trovoadas ) que se aproximava do aeroporto do Galeão pronta para descarregar um bom número de refrescantes aguaceiros. Nada de preocupante em termos de aviação pois que a actual geração de radares de bordo consegue detectá-los a léguas de distância, mas nem toda a gente gosta de ver raios e trovões no horizonte quando sabe que vai andar lá por perto. O espectáculo é soberbo, particularmente visto “de cima”, mas pode gerar algum desconforto em quem não esteja habituado.
Uma vez fechadas as portas do avião e arrancados os quatro reactores recebemos autorização para nos dirigirmos para a pista de serviço para descolagens. Durante este percurso, que em gíria aeronáutica se chama “taxi out”, fazemos uma série de verificações e check lists, operações que requerem toda a concentração dos pilotos pelo que só em condições excepcionais são toleradas quaisquer intromissões. Só que por vezes não há alternativa, como aconteceu naquele fim de tarde. O Supervisor accionou o sistema de segurança da porta do cockpit e pediu autorização para entrar:
“Que se passa?”, perguntei
” Comandante: temos uma passageira muito jovem, catorze ou quinze anos, que está com um ataque de pânico agarrada a uma das portas do avião. Está aos gritos, quer sair.”
“Não consegue acalmar a garota?”
“Não. Já tentámos tudo e ela cada vez grita mais. Diz que quer sair do avião, está desesperada. Os pais estão por perto mas também não conseguem fazer nada.”
Era uma situação delicada. Por um lado tínhamos a bordo uma passageira que não queria seguir viagem mas por outro sabíamos que se voltássemos para o estacionamente isso iria provocar um atraso de várias horas na partida do avião. Seria necessário descarregar as bagagens respectivas, fazer um novo plano de voo, negociar um “slot” para descolagem, etc. Uma carga de trabalhos. Lembrei-me então de tentar uma solução de recurso:
“Veja se consegue convencer a garota a vir ao cockpit. Diga que o Comandante lhe quer falar.”
“Vou tentar, Comandante. Vou tentar.”
Minutos depois o Supervisor voltou ao cockpit e trazia consigo a jovem em questão. Chorava convulsivamente e tremia. Os olhos muito arregalados pareciam suplicar por piedade. Estava a passar por um momento muito mau, seguramente.
“Como te chamas?, perguntei
” MMMM Marta”, respondeu soluçando.
“Senta aqui atrás de mim, Marta”.
Sentou-se então na cadeira do observador situada logo por trás do Comandante.
“Não te preocupes, Marta. Vai tudo correr bem. Dá cá a tua mão.”
Ficámos de mão dada durante alguns minutos enquanto fazíamos os preparativos para a descolagem, que ia ser feita pelo copiloto. Era essa a rotina e esse facto permitia-me ficar um pouco mais livre para prestar atenção à nossa inesperada “convidada”.
As luzes do cockpit e as luzes da pista pareciam distrair a Marta. A serenidade dos pilotos e o som das comunicações também devem ter ajudado porque antes de alinharmos o avião na pista de descolagem já ela não chorava. Pareceu-me até ouvi-la dizer “Que giro!”
Logo que o avião começou a voar, uma vez cumpridos os procedimentos de descolagem voltei à fala com a jovem:
“Vês, Marta. Olha ali a ponte de Niterói, que coisa linda. E lá longe o Corcovado, todo iluminado. Há coisa melhor?.
“E aquelas luzes a piscar, ali à esquerda?”, perguntou ela.
“É um avião que vem em sentido contrário mas a voar muito mais baixo. Não há perigo.”
Estava ganha a batalha. A Marta já não chorava, o ataque de pânico tinha desaparecido e até me fazia perguntas sobre o que se passava no exterior. Durante a subida ficou de cara encostada à janela observando fascinada o espectáculo que se desenrolava perante os nossos olhos. Até da trovoada gostou:
“Wow! Viu aquele relâmpago? De repente ficou tudo iluminado, parecia que era de dia”.
Chegados à altitude de cruzeiro perguntei-lhe se se sentia bem e se queria comer qualquer coisa. Disse que sim e voltou para o seu lugar na cabina dos passageiros. Horas mais tarde vieram dizer-me que dormia profundamente ao lado dos pais.
Quando nos aproximávamos de Lisboa o sol começava a nascer anunciando um novo dia. É um espectáculo único, um privilégio, poder assistir ao nascer de um novo dia sobre Lisboa. O Tejo, o mar, as pontes, as colinas, o Cristo Rei, o casario, tudo isto se conjuga para proporcionar a quem tem a sorte de trabalhar naquela super “varanda” (o cockpit) um conjunto de imagens e emoções verdadeiramente inesquecíveis. E pensar que ainda nos pagam para viajarmos naquele lugar…
Foi então que a porta do cockpit se abriu novamente. Era o Supervisor e a nossa amiga:
“Comandante: a Marta diz que gostaria de assistir à aterragem em Lisboa no cockpit. Pode ser?”
“Claro que sim. Temos todo o prazer.”
Estava consumada a “cura”, pensei. Nunca mais tive notícias da Marta mas acredito que hoje andará a voar pelo mundo saltando de cidade em cidade como um pássaro a quem consertaram as asas temporariamente partidas.
NOTA – A fotografia é de outro voo qualquer em A340. Comigo está o Carlos Fernandes, a.k.a. “Kaká”, meu bom amigo e hoje Comandante de A340/A330
Texto publicado anteriormente em Out/2016