Views: 0
INVITE FRIENDS
INVITE FRIENDS
MEMBERS
DESCRIPTION
DESCRIPTION
Consciente da realidade emergente das novas plataformas… See more
GROUP TYPE
GROUP TYPE
General
News Feed
António Valdemar, o jornalista açoriano que “matou” Salazar por três vezes
O açoriano António Valdemar, considerado como um dos jornalista e investigadores mais cultos no nosso país, agora aposentado, é também conhecido por possuir uma “memória de aço inoxidável”, como lhe classificavam os amigos e inimigos. Foi recorrendo a esta capacidade que escreveu uma notícia biográfica no Correio dos Açores no dia da morte de Salazar, mas antes já tinha preparado uma longa necrologia para os jornais A Capital e O Primeiro de Janeiro. Foi assim que, segundo conta, “matei três vezes Salazar”. Fomos repescar a história contada pelo nosso prestigiado colaborador ao jornal A Capital.
Com um currículo muito rico não só como jornalista mas como investigador, António Valdemar, que nesta altura trabalhava no Diário de Notícias, foi um dos convidados para pertencer à equipa que, em 21 de Fevereiro de 1968, fez nascer o jornal A Capital.
E foi aí que, passados sete meses, foi encarregado pelo então chefe de redacção, Maurício de Oliveira, de redigir a biografia de Salazar, quando o estado de saúde do ex-Presidente do Conselho se agravou.
Uma peça escrita de emergência numa noite de boatos que, afinal, só viria a ser publicada praticamente dois anos depois.
A morte do ditador aconteceu a 27 de Julho de 1970, fez ontem 50 anos.
É este testemunho, da autoria do colaborador do “Diário dos Açores”, António Valdemar, publicado no então jornal A Capital, que transcrevemos a seguir:
“A Capital surgiu num momento de grande tensão e expectativa política nacional e internacional.
Viviam-se ainda os anos duros de Salazar embora o regime estivesse em progressiva agonia.
Durante cerca de um mês, em 1968, a queda de Salazar de uma cadeira quando lhe tratavam dos calos e das unhas dos pés, foi mantida em segredo.
Só no dia 7 de Setembro entrou no domínio público, através do noticiário da manhã da Emissora Nacional.
Ficou a saber-se que havia sido operado à cabeça, na Casa de Saúde da Cruz Vermelha.
Subia a escada de A Capital, instalada na Rua do Século, quando o velho Quinhones de Sá, administrador do jornal, me interpelou: “O Salazar estará vivo ou já morreu?”.
Apanhado de surpresa, procurei indagar o que significava tão insólita pergunta. Enquanto explicava o que ouvira na rádio, galgamos, rapidamente, o segundo lanço da escada.
Quinhones fez questão em ser ele a informar Norberto Lopes, o director; Mário Neves, o director-adjunto; e Maurício de Oliveira, o chefe de redacção.
Apesar de transmitir a notícia com descrição, os berros de Norberto Lopes provocaram um brusco e contagiante movimento de euforia.
Se a memória não me falha, terá ido logo para a Cruz Vermelha recolher elementos o António Carvalho agora redactor do Diário de Notícias.
Com ele seguiu um fotógrafo. Não sei se Alberto Peixoto, se António Marques.
Perante a iminência de uma edição especial, do outro lado do telefone, a Censura advertiu que só era autorizada a publicação de um comunicado a enviar pelo SNI (Secretariado Nacional de Informação).
Maurício de Oliveira, com «a ironia circunspecta de um almirante civil», observou ao coronel Salgado ( FRANCISCO CARDOSO SALGADO; TIO DE RICARDO SALGADO E IRMÂO DE JOSE MANUEL SALGADO, DA PIDE) que um comunicado tão lacónico parecia mesmo um anúncio disfarçado da Agência Funerária Barata.
Talvez fosse melhor deixar sair uma notícia ou reportagem acerca da operação com os nomes dos médicos que intervieram.
Champanhe na redacção a festejar a morte de Salazar
(Entretanto vinha uma garrafa de champanhe da Lagoa dos Mariscos, restaurante da esquina da Calçada do Combro com a Rua do Século, uma espécie de cantina de A Capital.
Começámos a beber e a festejar a possível morte de Salazar. Nessa comemoração participou Norberto Lopes até que, a certa altura, Mário Neves fulminou-nos com um olhar irado e rompeu com energia: “Temos que trabalhar. Temos que fazer o jornal. Acabem já!”.
Eu viria a tomar conhecimento minucioso do que sucedera, depois do 25 de Abril, quando notificado com outros colegas de A Capital, inclusive Norberto Lopes e Mário Neves, para ir prestar declarações à Comissão de Extinção da PIDFJDGS.
Havia um relato circunstanciado do que se passara, o que prova que dentro da própria redacção de A Capital, considerado um jornal da oposição, a PIDE encontrava-se infiltrada.
Havia que descobrir o denunciante. (Quem quiser esclarecer consulte o processo instruído pelo capitão Pardal, militar destacado do MFA).
Todos os jornais controlados pela Censura foram algumas semanas inundados a propósito do acto cirúrgico, da equipa médica, evolução da doença.
Na sequência de uma investigação de Fernando Dacosta no semanário O Jornal, António Macieira Coelho, filho de Eduardo Coelho, médico assistente de Salazar, revelou (em livro editado pela D. Quixote) factos aprofundados em tribunal e que contrariam a versão registada na biografia de Salazar feita por Franco Nogueira.
Mais ainda: de vários artigos de Norberto Lopes, nos anos 80, no Diário de Notícias.
Depois de mais de 40 horas de gravação que fiz com o médico Álvaro Athaíde estava a concluir um livro que acabou por não ser publicado, apesar de ser divulgado por Fernando do Dacosta, ao tempo ligado à editora Relógio d’Água.
Intitulava-se “O Doente do Quarto 68 – Doença e Morte de Salazar”.
O meu projecto malogrou-se porque dei a ler, previamente, o original dactilografado a Norberto Lopes e que ele aproveitou nos artigos do Diário de Notícias. Que me restava, afinal, dizer de novo e corrigir a versão oficial?
O prof. João Lobo Antunes (pai), num ciclo de entrevistas do jornal O Público, num depoimento ao jornalista António Melo, veio revelar que o operador de Salazar terá sido, conforme apurara na gravação para o meu livro, Álvaro Athaíde – após o 25 de Abril Grão-Mestre Adjunto da Maçonaria – e não Vasconcelos Marques.
No dia 14 de Setembro de 1968, Salazar, que a informação oficial apresentava numa tranquila convalescença, era atingido por acidente vascular cerebral.
Deslocou-se, expressamente, a Portugal o famoso médico americano Houston Merrit, que se limitou a confirmar a incapacidade física e intelectual de Salazar, a fim de prosseguir a acção política à frente do Governo.
Numa escaldante noite de boatos – “está em coma”, “morre esta noite”, “não passa de amanhã … “ – Maurício de Oliveira convocou-me, de emergência, para fazer aquilo a que se pode chamar um ante-projecto de necrologia.
Acumulava as funções de redactor de A Capital com as de chefe de redacção, em Lisboa, do Primeiro de Janeiro.
Neste trabalho que se prolongou pela madrugada, com muitos cafés e cigarros sobre cigarros, tive duas ajudas inesquecíveis: Manuel Batoreo, redactor do Nacional, e Rudolfo Iriarte, que chefiava a secção Internacional.
Enquanto recorria à memória, fui buscar a casa livros, folhetos e uma pasta de recortes de antigos jornais e de revistas que o meu pai me oferecera.
Manuel Batoreo e Rudolfo Iriarte ocuparam-se da cronologia da evolução da doença, dos factos políticos recentes e outras peripécias, desde a queda da cadeira ao internamento na Cruz Vermelha.
Parte foi aproveitada na peça que A Capital publicou acerca da substituição de Salazar por Marcelo Caetano; outra, repescada e actualizada, na ocasião da morte.
Sujeita aos condicionalismos da Censura, a necrologia ficou concluída, composta na tipografia, paginada e ilustrada, para utilizar em qualquer momento.
Segunda biografia para “O Primeiro de Janeiro”
No dia seguinte, Manuel Pinto de Azevedo, director de O Primeiro de Janeiro – ignorando o que se passara n’A Capital mas também alarmado pelos boatos que se multiplicavam – solicitou-me outra necrologia.
Já foi mais fácil escrever e também ficou de molho até à altura própria.
Anos depois, na Primavera Marcelista, ao ler com voracidade mais um volume do “Diário” de Miguel Torga, deparei com o registo da morte de Salazar.
Eis senão quando, passei a interrogar-me: “Mas eu já li isto? Ou qualquer coisa muito parecida? Parece-me a introdução do que escrevi n’O Primeiro de Janeiro … “A consulta da colecção do jornal e o confronto com o “Diário” de Torga esclareceram-me as dúvidas.
Existiam, de facto, coincidências, fundos de semelhança, aquilo a que os teóricos da literatura chamam “intertextualidade”. Era natural. O Primeiro de Janeiro em Coimbra, onde residia Torga, constituía uma das leituras obrigatórias para a oposição democrática.
Terceira biografia para o Correio dos Açores
Recebi a notícia da morte de Salazar em férias na ilha de São Miguel.
Mal soube, através da rádio, meu pai foi ter comigo à praia e gritou-me enquanto interrompia um mergulho: “O filho da puta finalmente morreu”.
Segui, pouco depois, para Ponta Delgada e instalei-me no Correio dos Açores para saber pormenores.
Não havia televisão e muito menos telemóvel e internet.
Chefiava a redacção Manuel Ferreira
Tinha como redactores e principais colaboradores Gustavo Moura (também correspondente de A Capital em São Miguel) e Rui Guilherme de Morais.
Manuel Ferreira escrevera o editorial e pediu-me que aviasse a resenha possível da vida e obra de Salazar.
Faltavam-me elementos de consulta na antiga redacção instalada na histórica Rua dos Mercadores.
Mas, aos trinta e tantos anos, possuía aquilo que amigos e inimigos meus classificavam “memória de ponta e mola” ou “memória de aço inoxidável”.
Retivera a estrutura dos textos para A Capital e O Primeiro de Janeiro.
Mais uma vez, com cigarros a seguir a cigarros, passeando de um lado para o outro, comecei a ditar a terceira necrologia de Salazar.
Gustavo Moura, à medida que ia dactilografando, passava as folhas para a tipografia.
O velho Humberto Raposo, com muitos anos de tarimba de apanhar notícias da rádio, quando não existiam nem agências, nem faxes, nem telexes e muito menos emails, deu conta do recado com espantosa agilidade e proficiência.
Ao terminar o “Humus”, um dos mais fabulosos livros da literatura portuguesa, Raúl Brandão remata na sua linguagem de pasmos e abismos: “É preciso matar segunda vez os mortos…”.
Consegui ir mais longe: matei e com muito gosto Salazar e por três vezes.”
