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O acidente
Não tinha dez anos. Sei disso porque meu irmão tem menos dez anos que eu e ainda não existia.
O homem gritou na rua “olha o chicharrinho fresco” e minha mãe mandou-me à mercearia de meu pai, para que ele comprasse dois quilos. Quando entrei, a correr, meu pai estava a falar com um cliente. Eu tinha ordens expressas para não me atravessar nas conversas. Chamava-se respeito. Hoje isto está cheio de gente especialista em interromper. Fáceis de identificar, estas criaturas. São as que cortam raciocínios, dizendo “não quero interromper mas…”, ou “não te esqueças do que estavas a dizer…”.
Vi-me num dilema. O que, num rapazinho, é uma coisa bastante complicada. Se me metesse na conversa, arriscava reprimenda. Se ficasse à espera que acabassem, o vendedor de chicharro já iria longe. Pesadas as consequências, decidi arriscar. Estava numa situação que o Direito qualifica como “estado de necessidade”.
Bastou balbuciar “pai” para vir o ralhete. “Já não te disse que não deves interromper quando estou a conversar com alguém?”. Corri para a rua, os olhos cheios de lágrimas. Se não gostava de ser repreendido, muito menos diante de gente. Claro que sabia, mas tinha motivo relevante para me meter no meio, cumpria ordens de minha mãe.
Corri pelo passeio e parei ao pé do vendedor de peixe. Mas não via nem vendedor nem peixe, uma raivezeta a fazer-me tremer. A minha casa ficava do outro lado da rua. E saltei.
Era uma zundap, daquelas dos anos 60, pesadas. Bateu-me e eu, de repente, era o super-homem dos livros. Nunca tinha voado. Atravessei a rua de São João pelos ares e bati com a boca na quina do passeio. As pedras da calçada de repente vermelhas, levantei-me para ir pôr água oxigenada. Mas as caras de horror dos que me rodeavam deixavam claro que aquilo não ia lá com pensos rápidos…
Enrolado no banco do Morris, senti-me desfalecer. O hospital ficava muito perto de casa, banco de urgências comigo e acordei com a voz do médico: “Pode coser, irmã”. A irmã era de caridade, mas não me pareceu assim, com a agulha na mão direita rumo à minha beiça. Levar pontos era um terror só de ouvir, e logo nos lábios, a sangue frio. Foram chamados dois enfermeiros para me segurar.
Ficou um trabalho bem feito. Sem tal competência, teria ficado um monstro que nenhuma bela escolheria vida adiante.
Mas, desde que me levantei na rua ensanguentada, até que me vi de novo em casa em estado de choque, só uma coisa me passava pela cabeça. Mais que as dores, o susto, a certeza de que podia ter morrido, a minha única preocupação era dizer, como disse: “o senhor da mota não teve culpa”. Disse-o a meu pai, ao perito dos seguros que me obrigou a levantar-me da cama e a andar para ver que não tinha mais mazelas, di-lo-ia onde fosse preciso.
“Não fizeste mais que a tua obrigação”, sentenciarão os que me lêem. E têm toda a razão. Era a verdade. Fui eu quem se atirou para a rua sem olhar para os dois lados. Mas podia ter tentado safar-me à zanga paterna pela minha imprevidência. Procurado atirar culpas para o lado. Escapulir-me, nem que fosse jurando não me lembrar.
Não falta disso para aí. Mentirosos, aldrabões. Mas eu aprendi muito novo o valor da verdade, da seriedade, da justiça. Antes ainda de aprender a não interromper conversas alheias ou que devo olhar para os dois lados antes de atravessar uma rua…
António Bulcão
(publicada hoje no Diário Insular)
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David Soares Dias
Fui criado e educado como foi o Amigo, Autor de tão importante quão Lindo texto. Assim eduquei os meus Filhos. Igualmente me dói constatar as ‘mudanças’… “Sinais dos tempos”…: “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades e mudam-se os pensamentos”… Assim reza um Velho e Sábio Ditado Popular…