ministério da educação desumano

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Não coce a barriga quando morrer outro professor!
Josefa Marques era professora do 1º ciclo do ensino básico, mãe de dois filhos, tinha 51 anos e morreu na sequência de um acidente vascular cerebral, que se somou a uma doença oncológica em grau avançado. Josefa Marques fazia quimioterapia. Nos últimos anos, o Regime de Mobilidade por Doença, colocando-a sempre perto da sua residência, permitiu-lhe ter o apoio da família. Mas a mudança ditada por João Costa, em nome da gestão de curto prazo de uma entidade metafísica despersonalizada, a que os tecnocratas chamam capital humano, foi colocá-la este ano a 207 quilómetros de casa.
Quando julgava que tínhamos chegado ao limite da desumanidade e do cinismo, eis que o ministro da Educação, em momento de dor e à boleia da ladainha arcaica do lamento, veio publicamente lembrar que “o Regime de Mobilidade por Doença permitia que a requerente apresentasse 11 escolas de proximidade para onde pretendia a deslocação, tendo a docente indicado [apenas] três opções”. Subliminarmente, subjacente ao lamento, eis mais uma facada de magarefe destro: afinal, a culpa foi da requerente!
Josefa Marques, inconformada com a insensibilidade com que o seu caso foi apreciado, pediu a revisão da falta de vaga na terra. O ministro da Educação respondeu-lhe assim, depois de morta. Espero que a justiça divina tenha sido mais magnânima que a justiça de João Costa e Josefa Marques tenha encontrado uma vaga no céu.
Naturalmente que não atribuo a João Costa responsabilidade directa na morte da professora Josefa Marques. Mas acuso-o de assédio moral no último transe da vida dela, por lhe ter recusado, sem qualquer vestígio de humanidade, solidariedade, empatia, sequer, a mobilidade por doença. No calvário que viveu durante os seis anos em que lutou contra o cancro, não deve ter havido nada mais doloroso do que ser destratada pelo sistema que serviu toda a vida quando, no fim dela, corpo carente de veneno quimioterápico, a mandaram trabalhar a 207 quilómetros dos seus.
A República vai pagar um preço alto por ter deixado a Educação nas mãos de João Costa. Misturar a sua cegueira com a busca de soluções tem sido desastroso para a escola pública. As manipulações, que antes tentava alinhar com a ortodoxia estatística, são cada vez mais descaradas e inesperadas.
A 26 de Setembro, durante uma visita a uma escola de Santo Tirso, João Costa disse haver, por semana, mil baixas por doença, apresentadas por professores. Mas falando de horários por preencher já usou um indicador percentual: 3%. No sistema de ensino labutam 130517 professores. Se seguisse a mesma regra, o ministro poderia ter dito que o número de baixas que referiu correspondia a 0,76% dos professores. Porque escolheu o valor absoluto em vez do percentual? Obviamente porque 1000 impressiona bem mais que 0,76.
Perdi a paciência para lidar com hipócritas, porque é graças à generosidade dos que os suportam que classes profissionais inteiras são esmagadas e enxovalhadas constantemente. Mas no transe dramático em que a morte de Josefa Marques nos mergulhou, não posso deixar de pensar nos outros 2876 professores, de frágil saúde física e psíquica dentro de uma classe globalmente demasiado castigada, a quem, tendo sido reconhecida uma doença incapacitante, foi negada uma mudança de escola ao abrigo do Regime de Mobilidade por Doença. Por eles, em nome deles, permita, professor-ministro, que um velho, que deu à Educação os melhores anos da sua vida e também passou pela política, que na política conheceu as piores pessoas, as mais mesquinhas, as mais desonestas, as mais incompetentes, e nas escolas se cruzou com as melhores, as mais generosas, as mais sabedoras, as mais humanas, lhe recorde uma máxima dos escuteiros, de que o senhor também é chefe: nunca é tarde para nos reconciliarmos com a justiça e reconhecer que nos enganámos.
Se não for capaz, ao menos não coce a barriga quando morrer outro professor!
In “Público” de 12.10.22
Joao Paulo Esperanca, Helena Olga Jesus and 336 others
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  • Deolinda Gonçalves

    Parabéns

    pelo seu testemunho..

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  • Corina Braga

    Excelente texto!
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  • AJ Styliano

    Demita-se por favor…
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  • Maria Oliveira

    Subscrevo incondicionalmente tudo o que redige.
  • Helena Nunes

    Excelente texto, com uma narrativa acutilante. Apenas acrescento que, nos dias de hoje, os professores de determinados graus de ensino, deviam ser tratados de forma especial pela “carga” que a profissão implica. O sistema político-educativo deveria est…

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  • Maria Nogueira

    Pesará sempre a responsabilidade moral, ou melhor , humana, já que em termos de ” moralidade” anda tudo por baixo. Lamenramos mais uma vida, que pese a sua doença, foi tão burocraticamente avaliada. Quantas mais ouviremos noticiar?
  • Rita Ruivinho

    Sem palavras Professor, o senhor disse tudo de forma magnífica.
    Obrigada pela sua coragem.
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