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História que merece ampla divulgação porque relata bem como era o fascismo salazarento
“Em obediência aos bons costumes”
Mas, nesse tempo, vir para Lisboa, solteira, para o pé do namorado, era algo mal visto no seio da família tradicionalista, católica praticante, que era a sua. Nesses anos, namorado não tinha o significado que tem hoje, o do companheiro com quem se vive. Os namorados da minha geração viviam separados, cada um em sua casa, e, em princípio e em obediência aos bons costumes, não havia entre eles, relacionamento sexual. A única liberdade que lhes era consentida era a de conversarem e, daí, a palavra “conversado” ser sinónima de namorado. Os namorados conversavam à noite, ela da janela, para baixo, e ele da rua, para cima. Namorar à janela de rés-do-chão já era motivo de censura, mas pior do que isso era namorar à porta da rua entreaberta. Saírem à noite, sozinhos os dois, nem pensar. Só com a rapariga acompanhada por alguém a fazer de “pau-de-cabeleira”, nome dado à pessoa que garantia o bom comportamento do rapaz e, consequentemente, o bom nome da namorada.
Neste quadro provinciano de bons costumes, houve que recorrer a um estratagema – pedir a donzela em casamento. Com o compromisso de noivado, já muita gente fecharia os olhos e muitas bocas maldizentes ficariam tapadas. Houvesse o que houvesse, sempre eram noivos e o casamento, aprazado, apagaria qualquer eventual liberdade menos própria. Nesse tempo, uma noiva ou, mesmo, uma namorada de muitos anos que não casasse, já não casava. Ficava para tia, como era costume dizer-se. Foi esta concepção de vida, carregada de hipocrisia, impensável nos dias de hoje, que, terminado o 5º ano do Liceu (o actual 9º) lhe não permitiu, a ela, aluna do quadro de honra, matricular-se no chamado curso complementar (o 6º e o 7º anos, ou seja os actuais 10º e 11º anos), a ponte necessária ao ingresso num curso universitário que teria de fazer, necessariamente, longe de casa e da tutela familiar. O pai não consentiu e o Magistério Primário foi a solução que se viu obrigada a aceitar.
O pedido de casamento revestiu-se de um cerimonial que relato para que os mais novos, tenham uma ideia do que era a nossa vivência em Évora, no país que tínhamos, sob um Estado e sob uma Igreja castrantes. Num Domingo de Verão de 1956, os meus pais dirigiram-se, comigo e as minhas três irmãs (os meus dois irmãos viviam no Brasil), a casa dos meus futuros sogros, na sequência de uma prévia combinação. Chegados aí, fomos recebidos pela família da futura noiva, os pais, dois irmãos rapazes, os avós maternos e uma tia solteira que vivia com eles. Terminados os cumprimentos de boas-vindas, o meu pai, muito compenetrado da seriedade do acto, tomou a palavra, dirigindo-se ao pai da donzela, pedindo-lhe a “mão da filha” para este seu filho, que era eu. De seguida, o meu futuro sogro chamou a filha a um dos quartos da casa para, em privado, saber da sua aceitação, após o que voltaram à sala com a resposta que todos esperávamos. Seguiram-se os abraços e felicitações usuais nestes eventos e terminou-se com uma singela confraternização à volta de uma mesa guarnecida com uns bolos, uns doces e bebidas a condizer.
Assim, a mais de um ano do casamento, a noiva pôde vir para Lisboa para casa de uma tia (irmã do pai) bem consciente das suas funções protectoras e vigilantes. Vigilância a que, como todos os casais de então, tínhamos artes de nos furtar. Nesse ano, cada um a morar e a trabalhar em seu sítio, juntávamo-nos às refeições e nos tempos livres.
O curso que a Isabel frequentava, no Instituto António Aurélio da Costa Ferreira, exigia muitas tarefas de preparação de material didáctico (as chamadas fichas) destinado a crianças com dificuldades na aprendizagem. Assim, em períodos de maior carga de trabalho, eu ia ajudá-la a casa da tia. O serão prolongava-se e, por volta da meia-noite, o tio recolhia ao quarto de dormir, mas a tia, cumprindo o seu dever de vigilância, a cabecear de sono, ficava a pé até eu sair, o que podia acontecer às duas ou às três da manhã. E foi assim, trabalhando, estudando e namorando que chegámos às férias de Natal de 1957, período que escolhemos para dar o nó, em Évora, cidade onde ambos nascêramos vinte e seis antes.
Nesse tempo uma professora não podia casar com um qualquer. O noivo tinha de ter uma profissão cujo vencimento igualasse ou superasse o dela. Oficialmente, eu era um desempregado. Os trabalhos de que me ocupava eram precários e sem qualquer vínculo contratual devidamente documentado. Assim, não podíamos casar. Por outro lado, juntar os trapinhos, como hoje se faz por aí, era impensável no seio das nossas famílias e profissionalmente arriscado pois uma professora oficial não podia viver em união de facto. Foi então que um amigo de família, com estabelecimento comercial no sector do vestuário, nos resolveu o impasse empregando-me, temporariamente. Feito o contrato, inscrevi-me no então Sindicato dos Caixeiros e, uma vez na posse de um documento comprovativo do meu ordenado, na ordem dos mil e duzentos escudos mensais, tratámos da papelada para o casamento. Foi assim, casados de facto e de lei, na situação de “marido da professora”, no mal-dizer, à “boca-pequena, de algumas familiares mais conservadoras, que completei a licenciatura
Continuar nas vendas e na propaganda de produtos farmacêuticos não era compatível com o tempo de que necessitava para as aulas na Faculdade, saídas de campo, trabalhos e respectivos relatórios e, ainda, para estudar. Uma bolsa de estudo que obtive da Fundação Gulbenkian, no valor de quinhentos escudos mensais, o ordenado da Isabel, na ordem de mil escudos, e uma pequena ajuda dos meus pais, eram suficientes para assegurar o essencial do nosso dia-a-dia. Quase sempre o jantar e, muitas vezes o almoço, ia buscá-los à cantina da Associação de Estudantes. Para tal, comprei uma marmita de alumínio com três recipientes encaixados uns nos outros, uma pega e uma tampa, concebida para transportar os componentes de uma refeição, com sopa, carne ou peixe e a respectiva guarnição. Com uma senha, no valor de nove escudos, as colegas de serviço à cantina, simpaticamente, aviavam-me uma dose reforçada, que dava para dois e sobrava. Esta prática, particularmente económica valeu-me a alcunha de “o marmitas” por parte de colegas com algum sentido de humor.
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Um memória exacta ,todos nós, portugueses de 70/80 anos, vivemos essas situações.
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