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Um Trevo de Quatro Folhas
Certo dia (ou seria certa noite?) estávamos a criticar determinado político local e eu caí no disparate de dizer: – Aquilo nem formado é! O que fui dizer! Natália Correia olhou-me de cima a baixo com os olhos esbugalhados, e disse-me naquela sua voz tonitruante: – Nem o Alexandre Herculano. Nem eu! Se houvesse ali um buraco, tinha-me atirado para dentro dele. Como era possível aquela montanha cultural, aquela inteligência vibrante, aquela poetisa genial e escritora sublime não ter sequer uma licenciatura? Aquela a quem vinham procurar figuras de renome mundial da literatura universal chamados por uma poesia deliciosa e transcendente e uma visão corajosa, acutilante e inteligentíssima dos acontecimentos que se desenrolavam num país em convulsão revolucionária. Limitei-me a comentar, como quem não quer a coisa: – Bom, mas isso são dois gênios. E mudei de conversa…
Era açoriana dos pés à cabeça e ninguém se espantará da amizade que nos dedicava, apoiando as nossas ideias emancipalistas. Quando José de Almeida inaugurou a sua e nossa Livraria Nove Estrelas, ela pronunciou um discurso cujo texto manuscrito me ofereceu, depois de lho ter pedido. Vejam como ela começa essa obra-prima que intitulou NO PRINCÍPIO ERA O LIVRO: “O livro é como um rio. Tem a sua nascente e a sua foz. E assim como o rio se mistura na vastidão oceânica, funde-se o livro na massa do saber universal”.
Não vos vou maçar com considerações interpretativas desse discurso magistral, politicamente hábil, fugindo a posturas divisionistas e fraturantes, e refugiando-se na essência da obra que vinha inaugurar: o livro que ela idolatrava, apreciava e gerava com magistral e genial mestria.
Vejamos agora a sua ligação á ilha em que nasceu, passadas que foram várias décadas. Ela pinta as paisagens de forma sublime como nenhum pintor, ainda que genial, conseguiu.
Retiro dessa obra prima que intitulou de “Singelinha” uns versos que Natália compõe quando lhe aborrecem as guerras tontas que a revolução gerou, como ela própria confessa:
Quando me acodem na berra
Destas guerrilhas sem glória
Saudades da minha Terra,
Põe-se-me a Musa remota
A trautear toutinegras
E dessas lembranças ledas
Aconchadas em camélias
Num rumor de frautas gregas
Sai-me a ilha em pastorela.
A partir daqui, memórias e imaginação temperadas por uma cultura gigantesca mas selecionada, e uma criatividade genial, compõe poesias que seriam tão encantadoras postadas em azulejos à entrada das localidades paradisíacas que ela descreve para se esconder das guerrilhas partidárias pós revolucionárias que a envolviam como deusa do pensamento livre que sempre tinha lutado contra o autoritarismo ditatorial esmagador e agora vencido.
Vejamos então esses poemas e digam lá se não tenho razão:
“Eram, nas Furnas, caldeiras
Guelras que o vulcão abria.
Mas se enxofradas as sombras
Em chumbo e cachão ferviam,
A luz por vales e lombas
Em hortências se aspergia,
Que não se ganham os deuses
Sem demos por mais valia
Por isso ali o inferno
Com o céu não contendia.
Vai daí que me ficasse
Esta concórdia sadia
De não frequentar negrumes
Sem numes por companhia.
Ou o contrário se quiserem
Que se Deus dá flor e fera
Eu sou por esta harmonia.”
Eram pastos paulatinos
E neles vacas sineiras
Espraiando em relvas fagueiras
Um viço cheio de sinos
E logo vinha o responso
Em estrofes de estorninhos.
Eram nas Sete Cidades
Que do sacerdote rei
As santas propriedades
São ao que dizem segredos
Castos que ali respirei
Duas luas – uma verde
Outra roxa – derretidas
Em águas que ali deixadas
São como o manto de Elias.
Mas a profundidade do pensamento e do sentir dessa andorinha com coragem de águia que sobe nas asas desse mesmo pensamento a alturas inimagináveis para nos deliciar o espírito, encantando partes dele que nem suspeitávamos que existissem.
Ouçam isto:
Quando me derem por morta
De lágrimas nem uma pinga:
Um trevo de quatro folhas
Tenho debaixo da língua.
Está em regra o passaporte.
Venha o Limite de idade.
Não me chorem, não é morte
É só invisibilidade
Túnel, poço ou espiral
Suga a alma. Fica o corpo.
Vai-se a cópia sideral
E isso não é estar morto.
É assombro e estranhez
Por não ser o céu ainda.
Há que morrer outra vez.
Demanda de Deus não finda.
Já noutro modo de ser,
Eterna, é contudo breve
A vida! Sempre a ascender
Fica cada vez mais leve.
Até que – é esse o endereço –
Já não é precisa a alma.
Unido o fim ao começo
Espírito encontra a morada.
De lembrar cessa o sentido
Onde está tudo na Glória.
Por isso pelo o caminho
Foi-se perdendo a memória.
Por favor, em funeral
Não me ponham pranto à volta.
Isso de choro faz mal
A quem do peso se solta.
Aqui parecendo cadáver,
Indemne á carne, não morta,
Já em frente vou na nave
Que eu tenho um trevo na boca.
E se a sombra me queimarem,
Bem hajam. Não sou católica.
Mas se missa me rezarem
Pela alma, não me importa.
Pois é, sempre a sondar o místico que buscou toda a vida sem encontrar, ela não se importa que lhe rezem uma missa por alma, e sempre fui tentado a promover esse ato religioso com os que como eu creem e se sentem transportados para junto do Criador pois que, pelo menos daí, podíamos vislumbrar o Olimpo dos deuses onde ela por certo nos espera.
Carlos Melo Bento
Açores, março de 2023.
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Maravilhoso texto, como também o sabe