médica em USF, Unidade de Saúde Familiar, vulgo “Centro de Saúde” ou “Caixa

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Joana Barroco

Esta sou eu, hoje, dia 17 de Março de 2020. Para quem achar que todo este aparato é imenso, podem esquecer essa ideia.

Vou primeiro contextualizar. Não trabalho no hospital, não trabalho num serviço de urgência e pouco percebo de medicina interna ou cuidados intensivos.

Estou num Unidade de Saúde Familiar, vulgo “Centro de Saúde” ou “Caixa”.
Estive todo o dia a fazer uma espécie de triagem dos utentes que vieram cá, na mesa que podem ver na fotografia. Tentei ao máximo dos máximos minimizar a circulação de doentes na minha unidade. Ao máximo, mesmo.

A mesa foi improvisada por nós, funcionários da unidade.
O acrílico que veêm foi arranjado por nós, funcionários da unidade.
O material que está em cima da mesa (termómetro, saturímetro) é nosso (pagamos do nosso bolso), funcionários da unidade.

Tenho neste momento duas máscaras cirúrgicas, colocadas há cerca de 12h (retirei-as para comer e voltei a colocar as mesmas), porque estamos a racionar o número de máscaras, porque se não daqui a meia dúzia de dias não teremos para todos.

A viseira (óculos) que estou a usar, é improvisada, encontrei-a por acaso no meia de tralha que tinha em casa. É minha.

A farda, a bata e as socas que tenho vestidas são minhas. Irão, eventualmente (porque não tenho outras para trocar), ser levadas para lavar na minha máquina da roupa em minha casa.

E desenganem-se os que pensam que este aparato me está a proteger!! Estas máscaras nem sequer protegem contra este vírus. Deveríamos ter fatos descartáveis, deveríamos ter equipamentos de proteção individuais.
Mas não temos. Os que temos são só para avaliar casos suspeitos. E são poucos e estão contadinhos.
O problema é que neste momento todos são suspeitos, só que o estado faz de conta que não, e quem tem de os ver nestas condições, que veja. É o que temos.

Não quero que pensem que estou a criticar a minha unidade. Muito menos os funcionários dela. Estamos a fazer o que podemos com o que nos dão. Todos nós!! Com o que o governo nos dá. Ou melhor, com o que não nos dá. Com a (falta de) preparação que o governo teve na luta contra esta pandemia. Estamos a trabalhar com aquilo que o estado não preparou. E teve tempo, meus amigos. Teve tempo.

Têm sido dias caóticos. Caóticos.

Não temos doentes entubados nem entre a vida e a morte. Não. Mas estamos na linha da frente, exatamente como os nossos colegas hospitalares (que tanta, mas tanta consideração merecem!!!) estão! E esta linha da frente assusta-me muito, muito mesmo. Porque tenho visto e vivido o quão pouco preparados estamos. O que eu vivo aqui, é vivido mil vezes pior nos hospitais. E isso assusta-me muito. Tenho medo que os nosso (poucos) recursos comecem a escassear, ainda antes do pior acontecer… e tenho muito medo porque os nossos governantes estão a ser completamente desonestos. Ingratos. Inúteis.

Sr. Primeiro Ministro, o povo português ainda não percebeu. Juro-lhe, ainda não percebeu. Ao contrário do que afirma, ainda não percebeu.

Ainda tenho idosos que vêm pedir a sua receita do seu medicamento para o qual ainda têm caixas em casa. E vêm aqui. Entram, agarram-se ao corrimão da escada, tocam nas cadeiras, respiram este ar!! E daqui vão à farmácia. E depois vão ao café (que ainda não fechou) e ao talho (que ainda não fechou) e aos bancos (que ainda não fecharam) e a casa da filha e do neto e do cunhado e da tia e da vizinha e sabe deus onde vão mais. Juro-lhe Sr. Primeiro Ministro, o povo português ainda não percebeu.

E o povo português vai morrer. Muitos de nós vamos morrer. Idosos. Jovens. Saudáveis. Doentes.

Escrevo isto, hoje, depois de 12 horas a tentar incutir ao povo que tem de ficar em casa. E tenho recebido risos e desconsideração. Tenho recebido pessoas que acham que estou a exagerar e que sou maluquinha por estar assim vestida.

Tenho medo, amigos. Tenho muito medo do que está a acontecer.

Por isso, peço-lhe Sr. Primeiro Ministro e Exmo. Presidente da República, declarem estado de emergência. Declarem quarentena obrigatória. Por favor, por nós, por vocês, por todos. Por favor.

Se não, vamos morrer. Muito de nós.

Joana Barroco
Médica Interna de Medicina Geral e Familiar