MARIA JOÃO RUIVO SESSÃO DE HOMENAGEM 38º COLÓQUIO

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Maria João Ruivo – uma homenagem

 

 

Quando eu era jovem pensava que as homenagens se faziam após a morte das pessoas. Nos últimos tempos tenho visto multiplicarem-se as homenagens a vivos e eu próprio tenho sido vítima dessa nova vaga.

O que agora constitui inteira novidade é celebrarem jovens. Quando o Chrys Chrystello me escreveu a convidar para vir aqui falar numa homenagem à Maria João Ruivo eu não fiquei propriamente ruivo, mas devo ter ficado pálido. Mas então a Maria João já tem idade para estas coisas? Eu bem sei que ela se apaixonou pelo Eduíno de Jesus, esse sim, objeto de homenagens todas as semanas – e muito justamente – e fazemos todos questão de cá estarmos daqui a cinco anos para comemorarmos o seu centenário. Mas estas coisas não pegam por contágio. A Maria João ainda é uma jovem com um currículo longo à sua frente pré-anunciado pelo que já publicou até aqui.

Claro que tem muito atrás de si. Por exemplo, uma magnífica carreira de ensino onde tem desempenhado um importante papel de mentora de jovens, sobretudo dos mais dotados e inquietos. E eu sei disso porque vários deles me têm batido à porta, teleguiados por ela e pedindo-me isto ou aquilo. Há hoje uma geração de alunos seus marcando presença e ostentando o selo didático, a influência direta, o dedo de professora e mãe-por-tabela da Maria João. Seria mesmo bom ter trazido aqui alguns deles para falarem da sua professora e mentora.

Conheço a Maria João há mais de trinta anos. Durante duas décadas e meia, graças à generosidade dos seus pais, passámos pelo menos um mês todos os verões na casa de veraneio deles na Caloura. Os seus filhos cresceram ali com os nossos – meus e da Leonor – partilhando dias inolvidáveis, banhos de mar, passeios pela ilha (ao Nordeste, às Sete Cidades, à Ribeira Quente, ao Faial da Terra) ou simplesmente caminhadas a pé após o jantar até à antiga tasquinha – hoje restaurante internacionalmente famoso – no Porto da Caloura. Inolvidáveis foram também os serões ao balcão com histórias, gargalhadas e serenatas. Tudo cenas de um mundo tardiamente romântico porque nem Garrett na casa da sua Joaninha alguma vez saboreou vivências como as nossas.

Como podemos – a Leonor e eu – esquecer os banhos nas águas mornas da Ferraria em noites da lua cheia de agosto, antes de esse pequeno paraíso ter sido descoberto pelos turistas?

Há dias, a propósito de uma nota bárbara minha, acompanhada de fotos enviadas a amigos, contando da minha mais recente visita ao parque da Caldeira Velha, aonde eu ainda não regressara depois das últimas renovações, ela reagiu nestes termos:

Nós fomos dos primeiros a fazer uso desse espaço quando os meus pais tinham a casinha do Poço do Cavalo. Um pastor mostrou-nos a cascata de água quente que formava uma poça e passamos a ir lá frequentemente. Éramos só os 5. Tínhamos de galgar uns troncos caídos na mata para lá chegar.

Bons tempos em que isso era nosso por usucapião.

 

Mas eu não fui convidado para vir narrar estas histórias de família. No entanto elas servem para enquadrar, explicar e justificar a minha presença aqui, porque antes de ser escritora a Maria João é mulher e mãe, professora, educadora e amiga.

Ela pertence àquela estirpe que refiro como a mulher de S. Miguel de que bem pode ser um protótipo: segura de si, assertiva, forte, capaz, seguidora de princípios, certeira nos seus juízos e rápida na língua, focada no que é justo e direito, tenazmente trabalhadora e dada a gestos altruístas, fazendo tudo pelos filhos, pela família e pelos amigos. No caso dela, pelos alunos também. A este esboço de retrato tipificante, devo acrescentar a sua profunda sensibilidade, inteligência e sentido de humor notáveis (uma confissão: esta última frase foi acrescentada pela Leonor e eu concordo inteiramente como ela a ponto de a fazer minha).

Frequentou o liceu Antero de Quental, forja de grandes figuras da história açoriana; em 1989 licenciou-se em Línguas e Literaturas Modernas (vertente Português/Inglês) na Universidade dos Açores. O pendor para a escrita nasceu-lhe cedo em casa. Todos falamos do pai escritor, todavia poucos saberão que a mãe, a dr.a Idalinda Ruivo, adorava fazer versos. Lembro-me de um soneto seu gravado em mosaico na casa da Caloura. Em 2011 a Maria João publicou comigo e com a Leonor um volume de homenagem ao pai – Fernando Aires – era uma vez o seu tempo, editado pelo Instituto Cultural de Ponta Delgada. Com dois colegas, coordenou o Livro de Memórias do Nosso Liceu. Em 2015, de novo comigo, reeditou num só volume o diário completo do pai – cinco volumes com os inéditos do 6º que o pai tinha na forja e ela depois coligiu. Foi editado pela Opera Omnia, de Guimarães. O diário, a crónica e o conto surgiram pois para ela com uma enorme naturalidade. Tive o prazer de prefaciar o primeiro volume de Um Punhado de Areia nas Mãos, a que já se seguiu outro. Vou autoplagiar-me lendo algumas passagens desse meu escrito sobre a nossa homenageada:

 

Basta embrenharmo-nos páginas dentro do seu diário para nos apercebermos de que estamos perante algo que está longe da clonagem do pai, já que o leitor sente ser muito outra a voz emergente nas entradas que perfazem o volume [e agora posso dizer: os dois volumes]. As diferenças vão surgindo aos poucos, à medida que o estilo pessoal da autora se vai afirmando com a sua própria voz. Há nela um cuidado de se demarcar da figura paterna – desde logo – e registe-se essa fundamental diferença – no pudor explícito de não confessar intimidades “porque nem tudo na vida se conta em praça pública” (diferentemente do pai, que não se coibiu de fazer revelações privadas), sem retirar ao livro o caráter de diário. Há um desejo manifesto de ultrapassar a ilha (ela até nota, eufórica, o aparecimento quase raro da vizinha Santa Maria no longínquo horizonte, algo que o pai nunca registou no seu diário, apesar de certamente a ter visto não poucas vezes nos seus inúmeros dias na Caloura), exemplificado em várias saídas para a Europa, desidério que ela também alimenta nos seus alunos por ela sempre estimulados a aprenderem o mundo, os mesmos que a professora acompanha quase maternalmente em viagens pelo continente europeu. Aliás, se possível fosse associar este a algum outro diário, seria ao de Sebastião da Gama, pelo entusiasmo e empenho manifestados na formação dos respetivos estudantes. Depois, a autora é uma mulher mais do seu tempo, mais global, com um sentido bastante mais chão e pragmático da vida, que alguns leitores atribuirão ao facto de ser mulher e outros ainda acrescentarão: ‘micaelense’. Tudo isso refletido numa escrita sóbria e vernácula, certeira e direta, colada à vida e à realidade terrena do quotidiano que é preciso viver e agarrar.

Uma novidade, portanto; nas letras açorianas, um caso único. Natália Correia escreveu Não Percas a Rosa, mas esse é um diário da revolução de Abril, e sobretudo de Lisboa. Maria João Ruivo escreve o diário de uma mulher da ilha, e isso constitui uma novidade literária e, por isso, um acontecimento a assinalar.

 

Eu terminava assim o meu prefácio:

Continua sendo tu própria, como tão rica e escorreitamente nos apareces nestas páginas.

 

O segundo volume de Um Punhado de Areia nas Mãos confirmou o talento, e a novidade passou a ser um dado concreto das nossas letras. Mais uma escritora, mais uma mulher a partilhar a sua visão e deste nosso mundo, numa linguagem incisiva, clara e vernácula, sabida da vida. Todos aguardamos o próximo, todavia o que é público até aqui mais do que justifica esta homenagem. Por isso eu achei que deveria ignorar o facto de ela ser ainda demasiado jovem para ser vítima de homenagens. Daí eu ter aceitado vir aqui sacrificá-la em público dizendo o que penso dela. Com a cumplicidade da minha Leonor, que pensa o mesmo.

 

Onésimo Teotónio Almeida

 

 

 

 

Sobre CHRYS CHRYSTELLO

Chrys Chrystello jornalista, tradutor e presidente da direção da AICL
Esta entrada foi publicada em 39º XXXIX Colóquio da lusofonia. ligação permanente.