mais piroso não há…

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Há dias estava em “zapping” quando vi um músico, tipo baladeiros dos anos 60 com uma pasta a dar-lhe um ar respeitável à moda do século passado e guitarra a tiracolo, a cantar “sei que não apareço nos jornais[1]” Era tão patético este “cantor romântico abandonado” licenciado em tecnologias de comunicação, que só me fez recordar uma cena de infância, há muito desaparecida do nosso quotidiano.

[1] https://youtu.be/OLoRTpTphys

https://www.discogs.com/Gon%C3%A7alo-Gon%C3%A7alves-Honey-Sei-Que-N%C3%A3o-Apare%C3%A7o-Nos-Jornais/release/5149863

 

Quem cresceu no Porto recorda-se dum divertimento gratuito nos anos 50 e 60 do século passado, aos domingos, na Praça do Marquês de Pombal, frente à Igreja. Por entre os idosos que jogavam às cartas (e passavam o vazio dos dias entre uma “bisca” ou uma “sueca”) surgiam, camionetas vagamente reminiscentes das velhas caravanas do oeste bravio dos EUA. Em vez de colonos temerosos dos índios (nativos americanos, como é politicamente correto chamar-lhes) havia uns homenzinhos de aspeto duvidoso, cabelo cheio de brilhantina, com um megafone (não havia microfones sem fios) a falar muito alto e a atraírem os passantes e basbaques com o verdadeiro elixir da longa vida, a poção contra a calvície, e outras que a medicina tradicional europeia nunca viria a adotar. Juntava-se sempre uma dúzia de pessoas, para ouvir as piadas e a arenga bem elaborada, e mais cedo ou mais tarde, surgia um comprador talvez coagido ou um comparsa do vendedor da “verdadeira banha” da cobra, que nunca foi personagem de ficção. Existe, progrediu e anda, por entre as turbas, dissimulado de pessoa de bem, ou até mesmo de empresário ou político.

Sabemos que a banha da cobra[1] não serve para nada, mas a firmeza do homem empoleirado na carripana, com a sua bem estudada eloquência, persuadia muitos sobre as mil e uma aplicações desses remédios miraculosos contra impigens, mau-olhado, torcicolos, urticária, febre dos fenos, dores de dentes, nervos, escleroses, artroses, entorses, diarreias, sarampo, escarlatina, espinhela caída, dores das cruzes, doenças do miolo, treçolho, verrugas, cravos e desmanchos. Todos curados pelas propriedades da banha desse animal, a cobra, e assim a verborreia oratória enleava as pessoas que paravam. Ainda estão vívidos os pregões: “Não custa nem 20, nem 15, nem 10! Custa apenas 5, quem levar dois leva um totalmente de graça. Um para aquele senhor, outro para aquela menina…”

Por vezes era elixir, umas em pomada, outras em forma líquida… o povo comprava os frasquinhos milagreiros e o vendedor da banha da cobra ia-se governando. Apregoava a honestidade afirmando ter licença camarária e não estar ali para enganar ninguém. O vendedor da banha da cobra existe há séculos, a sua origem é chinesa lá onde se vende óleo de cobra de água (Enhydris chinensis), para tratar dores nas articulações, embora seja associado jocosamente por especialistas em criptografia para designar produtos que dão uma falsa sensação de segurança. O óleo de cobra refere-se a falsos remédios vendidos nos EUA no século XIX com a promessa de curar qualquer doença. Em tecnologia, o termo é usado para produtos que oferecem segurança absoluta e criptografia indevassável, mas de qualidade questionável ou inverificável. Se é seguramente certo que a banha da cobra não cura, também não consta que tenha saído algum mal para a saúde pública e para o mundo. E não havia mal ou maleita onde o resultado não fosse prodigioso! Tudo e o seu contrário a famosa pomada resolvia. E para que não houvesse dúvidas os argumentos eram um primor de explicação: “É que bocencia tem uma dor de dentes, mas o dente não dói. O dente é corno, o corno é osso e o osso não dói, o que dói é o nervo”.

Gostava de estar convicto – mas não estou – de que a maioria das pessoas não acreditava minimamente naquilo, mas inexplicavelmente compravam! E a vida de vendedor de ilusões prosperava! Embora há muitos anos não ouça o seu pregão genuíno, não tenho dúvidas de que ainda andam por aí. Agora, nesta era de globalização, talvez de colarinho branco e quem sabe de barba bem aparada para aparentar respeitabilidade. Talvez os dos bancos que foram à falência BES, BPN; Banif, etc.…. Pode ser verdade o que muitos dizem, foram tirar cursos à Universidade Independente e entraram todos para o Governo… Mas do que me lembro mesmo, e que me mesmerizava em tão tenra idade, é ficar a ouvir os vendedores de banha de cobra antes de ir à missa dominical e depois ir almoçar na cantina da Igreja do lado esquerdo sob a cripta. Até hoje tenho esta frustração enorme de ainda não me ter aparecido o vendedor de banha da cobra que me convencesse, como devem ser felizes os que acreditam e compram…

[1] data do séc. I a.C. e inspira-se na receita secreta de teriaga, medicamento complexo com 64 componentes. Acreditava-se que era antídoto para venenos. Na confeção, a carne de cobra era fervida muitas horas ou calcinada até ficar em pó, conservado em frascos, depois misturada com gordura, sob a forma de unguento. O nome era a banha da cobra. O grande número de componentes, a raridade de alguns, e o elevado preço, tornavam difícil o acesso. Passou a produzir-se outro, com menos componentes: bagas de louro, mirra, genciana, aristolóquia e mel. Era a teriaga dos pobres. Os que viviam em locais mais afastados, por falta de um composto, usavam alho para combater a peste e outras doenças, a teriaga dos camponeses.