Madeleine Albright: ″Salazar não era fascista″

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A ex-secretária de Estado dos EUA vai publicar o livro Fascismo – Um Alerta. Não esquece Trump, fala de governantes que pisam o risco, como Erdogan ou Maduro. Quanto a Salazar, diz que “não era fascista, via o nazismo como imoral e desconfiava da democracia”.

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Madeleine Albright: “Salazar não era fascista”

A ex-secretária de Estado dos EUA vai publicar o livro Fascismo – Um Alerta. Não esquece Trump, fala de governantes que pisam o risco, como Erdogan ou Maduro. Quanto a Salazar, diz que “não era fascista, via o nazismo como imoral e desconfiava da democracia”. (entrevista publicada originalmente a 30 de setembro)

Otema do novo ensaio histórico de Madeleine Albright é muito sério, mas a ex-secretária de Estado de Bill Clinton gosta de introduzir pormenores divertidos – e pessoais – enquanto retrata governantes autoritários que se enquadram no tema do seu livro, Fascismo – Um Alerta . É o caso da memória sobre o seu primeiro encontro com Vladimir Putin, em que este faz um comentário brincalhão sobre o alfinete de peito que Albright levava mas, ao virar-se para as câmaras de televisão, é violento e ríspido para com a representante dos EUA. Existem muitos testemunhos tão hilariantes como trágicos nestas 300 páginas de investigação histórica, mas na narrativa nunca deixa de pairar a sombra da atual administração Trump.

Ao longo de dezena e meia de capítulos desfilam os protagonistas autoritários e fascistas que controlaram e controlam o mundo, mas nunca está ausente a crítica ao atual Presidente e um aviso aos leitores sobre um mal ideológico que não morreu com o fim da Segunda Guerra Mundial. Era impossível não perguntar na única entrevista que Madeleine Albright dá para Portugal o que pensa sobre o ideário político de Salazar, figura a que dedica apenas quatro linhas na galeria de governantes autoritários e fascistas.

Escolhe para epígrafe uma frase de Primo Levi: “Todas as épocas têm o seu fascismo.” Não poderia ser outra a opção?

Em primeiro lugar quero expressar a minha gratidão por esta oportunidade de partilhar os meus pensamentos com os vossos leitores. O Diário de Notícias é um jornal altamente respeitado, com mais de um século e meio de história. Os meus parabéns. A epígrafe de Primo Levi captura em sete palavras a minha tese de que o fascismo, embora as suas sementes tenham sido plantadas no início do século XX, continua a ser um perigo. Penso que a citação encaixa bem na mensagem do livro.

Usa no título do seu livro a palavra fascismo. Não bastava autoritarismo?

Todo o fascista é autoritário, mas nem todo o autoritário é fascista. Muitos ditadores sobrevivem suprimindo a vontade popular. Os fascistas, pelo contrário, procuram aproveitar a vontade popular e direcioná-la para a violência. Essa é uma diferença que eu exploro no livro.

Os seus alunos surgem em vários capítulos. Precisa dos jovens para fazer um paralelo ou quer mostrar aos leitores que se perdeu a memória do século XX?

Preocupa-me que as lições do passado sejam esquecidas. No entanto, eu escrevo sobre os meus estudantes para ilustrar os debates que tantos de nós estamos a ter, neste momento, sobre os problemas da democracia moderna e das ameaças a que ela está sujeita. Além disso, os meus alunos são bastante inteligentes.

É impossível ler este ensaio sem pensar em Trump. Foi uma coincidência o seu desejo de escrever sobre o tema e a sua eleição?

Decidi escrever este livro antes das eleições de 2016, na esperança de realçar a importância da democracia durante a presidência de Hillary Clinton. A vitória de Trump veio intensificar o sentido de urgência.

Não lhe faltam políticos com pendor “fascista” em todos os capítulos. Qual a razão de se apresentarem ao eleitor como salvadores e terminarem como ditadores?

A velha frase “o poder corrompe” é verdadeira. Hitler sempre foi um monstro, mas mesmo pessoas bem-intencionadas podem ficar convencidas depois de alguns anos a ocupar um alto cargo de que só elas sabem o que é melhor e que, portanto, os seus opositores políticos são um perigo para a nação.

Na sua carreira política encontrou políticos excecionais e que escapem ao autoritarismo?

Muitos, mas Václav Havel e Nelson Mandela são dois homens que compreenderam claramente as tentações perigosas que o poder pode apresentar para aqueles que estão em posição de o exercer.

Houve algum político deste ensaio que tenha lamentado ter de o incluir nesta longa lista de pessoas más?

Não estou certa de que classificaria todos os indivíduos sobre os quais escrevo como “pessoas más”. Vários, incluindo Hugo Chávez da Venezuela e Tayyip Erdogan da Turquia, começaram bem, mas depois não conseguiram restringir as suas ações. Praticamente todos eles são líderes talentosos que poderiam ter feito muito mais pelos seus países se tivessem aceitado o sistema de controlos e equilíbrios que uma democracia saudável requer.

Se os fascistas não tivessem alterado o sentido da sua vida a 15 de março de 1939 teria escrito um livro diferente?

Se a minha vida não tivesse começado como começou, eu poderia estar agora sentada algures nas montanhas da Boémia, a beber leite morno e a tricotar camisolas para os meus netos. O mais provável é que estivesse a ler livros e não a escrevê-los.

Refere que os seus pais “prezavam as liberdades que encontrámos no nosso país de adoção”. Atualmente, acha que teriam o mesmo sentimento para com os EUA?

Sim. Por muito perturbadores que sejam os acontecimentos recentes, ainda há liberdade na América numa medida que os checos e os eslovacos da geração dos meus pais não conheceram, devido à ocupação nazi e a décadas de domínio comunista.

Considera que a eleição de Trump veio abrir uma ferida que “estava quase cicatrizada” e que obriga a voltar a falar em fascismo. Porque não previram os eleitores americanos esta situação?

O resultado da eleição presidencial americana de 2016 surpreendeu-me, a mim e a muitos. Vale a pena lembrar que houve mais americanos a votar em Clinton do que no seu adversário. No entanto, Trump convenceu o número suficiente de pessoas, nos estados suficientes, de que faria um melhor trabalho a representar os seus interesses e valores.

A administração Trump vai apagar todos os esforços realizados no campo social pelas de Clinton e Obama?

Vai depender muito de se o Congresso dos EUA aceitar a sua responsabilidade de se opor ao presidente quando este está errado. Eu estou particularmente preocupada com a decisão de Trump de se retirar do acordo nuclear com o Irão e do acordo de Paris sobre as alterações climáticas globais.

Ao ler o seu livro é impossível não ficar com a opinião de que após o fim da Segunda Guerra Mundial o fascismo não foi eliminado e que tende a regressar periodicamente em vários países do planeta. Concorda?

Em 1945, na reunião da Organização das Nações Unidas, o presidente Truman disse que era mais fácil derrotar homens maus do que ideias más. O potencial para o fascismo se afirmar existirá sempre. Essa é a principal razão pela qual achei necessário escrever este livro.

Ao questionar como é que “um fascista consolida a autoridade” uma das respostas dos seus alunos foi “controlando a informação”. Qual é a sua opinião sobre a comunicação social tendo em conta a proliferação de fake news e mistificação da realidade?

A primeira medida que um regime fascista adota é tentar monopolizar o fluxo de informação através da sua própria propaganda, do controlo dos meios de comunicação em todas as suas formas e determinando o que pode ser ensinado nas escolas. No processo, procurará desacreditar aqueles que apresentam narrativas diferentes da realidade. O fascismo prospera quando as pessoas estão convencidas de que toda a gente mente e de que é necessária uma mão de ferro para impor a ordem num mundo caótico. É por isso que a comunicação social corajosa e independente é essencial para a democracia.

Descreve Mussolini como “mulherengo” e Hitler como mau orador. Hoje, com as redes sociais, seriam erradicados à nascença?

Ambos tinham falhas enormes e óbvias, mas eram também mestres na comunicação. Receio que, se estivessem vivos hoje, eles estariam a usar as redes sociais a seu favor.

Dedica algumas linhas ao caso português do “ditador António de Oliveira Salazar” e afirma que ele adotou as características autoritárias do fascismo mas rejeitou qualquer rebelião contra as doutrinas da Igreja. É um grau menor no termómetro do fascismo?

Deixo para os vossos leitores o julgamento de Oliveira Salazar. No entanto, a minha impressão é que ele se enquadra na categoria dos líderes autoritários. Não era fascista, via o nazismo como imoral mas desconfiava da democracia.

Durante o seu mandato como secretária de Estado confrontou-se com os conflitos étnicos na própria Europa. Acredita poder voltar a ver neste continente situações que se julgavam ultrapassadas?

Espero que não, mas sim. Ainda há movimentos separatistas em alguns países e as tensões interétnicas continuam a ser significativas nos Balcãs. Os líderes têm a responsabilidade de as gerir de maneira a que não resultem em mais derramamento de sangue.

Tem um capítulo sobre Hugo Chávez. Como vê o seu sucessor, Maduro?

Infelizmente, Maduro não tomou medidas para corrigir os erros cometidos por Chávez. Pelo contrário, dividiu ainda mais o povo venezuelano e levou um país que deveria ser próspero a uma catástrofe económica e política.

Defendeu a adesão da Turquia à União Europeia. Erdogan agiria de forma diferente se tivesse acontecido?

Penso que sim. No mínimo, os líderes europeus teriam muito mais influência nas políticas e ações turcas do que têm hoje. Erdogan também teria mais dificuldade em gerar ressentimento para com o Ocidente entre o seu próprio povo.

Um ensaio “começado” a escrever em criança

Fascismo – Um Alerta não é um trabalho de história que tenha nascido há poucos anos na mente de Madeleine Albright, basta ler as primeiras palavras com que introduz o seu livro aos leitores: “No dia em que os fascistas alteraram pela primeira vez o sentido da minha vida, eu mal dominava a arte do caminhar. Foi a 15 de março de 1939. Batalhões de tropas de assalto alemãs invadiram a minha Checoslováquia natal, escoltaram Adolf Hitler até ao Castelo de Praga e empurraram a Europa para o limiar da Segunda Guerra Mundial. Depois de passarmos dez dias escondidos, os meus pais e eu fugimos para Londres. Aí unimo-nos a exilados de toda a Europa no auxílio ao esforço de guerra dos Aliados, esperando ansiosamente pelo fim daquela provação.”

Mesmo a chegar ao fim, Albright volta a incluir a sua vivência: “A sombra que paira sobre estas páginas é, evidentemente, a de Donald Trump. Tornou-se presidente porque convenceu eleitores suficientes nos estados certos de que dizia a verdade sem rodeios, de que era um negociador magistral e um campeão efetivo dos interesses americanos.”

Não faltam exemplos neste ensaio da sua experiência enquanto cidadã, professora ou política, mas o que mais surpreende é a perspicácia dos retratos que faz dos governantes com perfil democrático que se tornam autoritários, nomes que vão muito além dos mais conhecidos, Hitler e Mussolini. É o caso de exemplos mais recentes, como o da guerra civil e de massacres impensáveis em plena Europa, como os que trouxeram o Kosovo de volta à história enquanto Albright era governante. Um dos capítulos mais reveladores deste livro é o dedicado ao fenómeno Hugo Chávez, em que afirma que a sua “presidência foi tanto uma expressão autêntica de democracia quanto um perigo para ela”. O mesmo se passa com casos contemporâneos: o presidente turco, as situações políticas na Polónia e na Hungria ou as páginas dramáticas em que fala do “exibicionista” Putin.

A intenção de Albright é fornecer um manual sobre a governação antidemocrática que ameaça o presente, daí que no fim insista no grande perigo planetário: “Se pensarmos no fascismo como uma ferida do passado que estava quase cicatrizada, colocar Trump na Casa Branca foi como arrancar o penso e remexer na crosta.”

Fascismo – Um Alerta

Madeleine Albright

Editora Clube do Autor

318 páginas

(entrevista publicada originalmente a 30 de setembro)