MACAU TERRA DE PECADOS

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Carlos Piteira, antropólogo: “Macau sempre foi uma terra de pecados”.
Carlos Piteira lançou um novo artigo académico a defender que a identidade chinesa das regiões do sul da China vai sofrer mudanças com a modernização progressiva, graças a projectos como a Grande Baía.
No momento em que se celebra o 22.º aniversário da implementação da RAEM, o académico lamenta que se olhe para os portugueses de Macau como emigrantes e defende que a comunidade é fundamental para que os macaenses mantenham a sua singularidade.
– O seu novo artigo traz a ideia de que a identidade chinesa nesta região está em mudança. Em que aspecto?
Há uns anos fiz uma apresentação sobre os efeitos da modernização na questão da identidade.
Depois reformulei e tentei generalizar mais essa questão do impacto na própria reformulação da identidade chinesa.
Este é um problema com o qual a China vai ter de se defrontar, e que ainda não percebeu não se tratar de uma questão política, mas social.
– Que é a integração destas identidades no sul da China.
Exactamente.
Macau e Hong Kong são laboratórios, e temos Zhuhai e Shenzhen, em termos de modernização, e depois a Grande Baía.
Há um núcleo económico que vai trazer modernização ao movimento social.
Falamos de duas coisas paralelas e que podem ser coincidentes ou não.
A dinâmica social poderá sobrepor-se às vontades políticas, porque a modernização vai trazer bem-estar e estilos de vida.
– Mas problemas também.
Claro, mas sem carga ideológica.
Macau é um exemplo disso, porque teve um processo de modernização mais cedo, assim como Hong Kong, o que levou a um modo de vida diferenciado que se traduz na identidade regional ou local. Independentemente do regime, as pessoas querem é sentir-se bem, esse é um direito que as populações têm.
– Terem emprego…
Bem-estar, habitação.
É o que Macau e Hong Kong oferecia, bem como Cantão e Shenzhen.
Esse bloco do sul da China vai ser a garantia de que o país vai ser uma potência económica.
O foco está ali e a modernização terá os seus efeitos.
Daí que defenda, neste artigo, que esse efeito acarreta a reformulação da identidade dos chineses.
– E não só dos macaenses.
Porque essa já está a sofrer alterações.
Hong Kong e Macau são laboratórios sociais interessantes para quem analisa o efeito de uma dinâmica social, independentemente do modelo político.
A China já se apercebeu disto, mas ainda não sabe como vai analisar.
O país paralisou no tempo, esteve fechado ao mundo, e não há mais experiências deste tipo.
Há uma dinâmica social que é alheia às vontades.
– Têm sido feitos estudos que concluem que a maioria dos chineses locais têm ligação identitária à nação. Isso será mais evidente, o sentir-se menos chinês de Macau e mais chinês da China?
Diria que o reforço vai ser nas duas vertentes.
Uma coisa é a identidade nacional, o patriotismo, e essa é a tradição histórica.
Em paralelo, surgiram identidades regionais em Macau e Hong Kong e que se vão alastrar a zonas como Cantão.
As pessoas vão reclamar uma identidade paralela à nacional, e isso vai assentar nos efeitos da modernização.
Não é algo ideológico.
Será muito suportada na qualidade de vida, e é isso que a China promete com o projecto da Grande Baía.
– As casas para idosos…
E a riqueza.
Não faz sentido desligar isto do projecto nacional.
Por isso digo que Macau, ao ser sugado pela Grande Baía, algo que acontece por imperativos da própria China, coloca-se a questão regional na nacional.
Mas como vamos, no meio disto tudo, manter a presença singular da lusofonia?
Esta é a questão central, porque está determinada na forma de integração de Macau.
– E como é que isso pode ser feito?
Aí o trabalho é do Governo português, e não de Macau.
O trabalho que está em aberto é o das autoridades portuguesas, e ainda temos 30 anos.
Tenho esperança que as coisas possam acontecer.
Tenho uma certa simpatia pela capacidade que os portugueses que estão em Macau têm de resistir, porque é uma resistência absurda.
Estão completamente sozinhos.
É algo muito individual e em alguns casos até se põe a vida em jogo nessa capacidade de resistir.
Porque Macau não perdeu qualidade, a vida das pessoas não se alterou muito.
Mas temos a questão dos valores.
Nunca podemos ver a presença portuguesa em Macau como se fossem emigrantes.
Este foi um erro de base.
– Isso foi visto pelas autoridades portuguesas desde a transição.
Foi sempre.
A lógica, depois da transição, foi ver a comunidade como emigrantes.
Isso nunca deveria ter sido feito, porque é uma presença portuguesa numa tentativa de manter um legado que, provavelmente, até poderia ir além dos 50 anos.
– Falamos de pessoas que ficaram, permaneceram, e que voltaram após 1999.
E há alguns que apostam já na vida dos seus filhos, numa lógica de legado.
Esta é a grande lacuna 22 anos depois.
Os macaenses sobrevivem devido à presença da comunidade portuguesa.
– E por resistência também?
Sim.
O macaense não tem a necessidade de sair de Macau, mas a comunidade portuguesa tem sempre um plano B para regressar a Portugal.
O macaense tem ligações com o poder chinês para se manter e para ele não há essa questão de Macau se transformar na China, porque sempre foi inevitável.
Mas como é que essa pequena etnia e comunidade se consegue diferenciar.
Vai ter de fazer estratégias, e já se nota.
– Como por exemplo?
Alguns macaenses já se deslocam para a matriz chinesa.
– A mudança de identidade chinesa também acontece aí.
Há essa simbiose.
A comunidade chinesa modifica-se, porque quer ser de Macau.
Temos chineses que já se auto-denominam como macaenses e temos macaenses que já se ligam a essa identidade mais de matriz chinesa, mas querendo manter uma diferenciação dentro desse grupo.
Até à transição, os macaenses eram portugueses, mas eram diferentes.
Agora podem ser chineses, mas também diferentes.
A gastronomia e o patuá estavam esquecidos na história, e de repente saíram das casas das pessoas.
– Há elementos identitários da comunidade macaense que necessitam de ser explorados?
A religião é um desses elementos, com raízes portuguesas e filipinas também, as procissões e o carnaval.
O festejar o carnaval é algo macaense, bem como o Chá Gordo.
Há aqui coisas que podem ser ressuscitadas como um traço singular dos macaenses.
A comunidade vai muito por aí, mas tem um instinto de sobrevivência.
– Sempre teve…
Sempre teve.
Este instinto é que vai levar a reformulações na identidade macaense.
Na geração pós-transição as coisas têm sido diferentes, porque esta vive num mundo global e tem ligações não apenas com Portugal.
Mas se desaparece a comunidade portuguesa é um problema para os macaenses, porque é isso que reforça a lógica de ligação, mesmo não tendo essa matriz tão garantida.
– Se a comunidade portuguesa desaparecer…
[A comunidade macaense] fica monolítica.
Neste momento, há um equilíbrio, porque esta inverteu as relações de poder com os chineses, mas os portugueses, a sua alma, estão lá.
Se os portugueses saírem, os macaenses viram-se para a comunidade chinesa.
– Mas, 22 anos depois da transição, a comunidade portuguesa está em profunda transição. Há muitos quadros qualificados a deixarem o território, por exemplo.
O processo está a ser acelerado e não era para ser assim.
Era para ser um processo mais gradual, quase sem darmos por isso.
Poderíamos chegar ao fim dos 50 anos e Macau ser um espaço singular capaz de ser culturalmente diverso.
– Falando da educação. Disse-me que uma das grandes transformações será neste sector. Há dias saiu uma notícia sobre a vontade de Pequim de aumentar o domínio do mandarim no ensino. O que vai acontecer?
Os programas escolares vão ter de ser alterados, e também ao nível da história de Macau.
Mas essa já está feita por investigadores chineses.
A consequência natural seria sempre reformular os valores através da educação.
A Escola Portuguesa de Macau [EPM] vai ser apanhada por isto, e vão ter de introduzir programas.
– O ensino do mandarim tem ainda pouca expressão.
Mas vai ser forte.
Aqui, o Ministério da Educação em Portugal tem de se pronunciar.
A particularidade de uma escola portuguesa em Macau é a possibilidade de os chineses estudarem essa estrutura curricular.
Se lhe tiram isto, tiram tudo, passa a ser uma escola normal.
A estrutura curricular poderia ter disciplinas obrigatórias e opcionais, por exemplo, fora do programa oficial.
Não tenhamos ilusões: o programa oficial é para entrar.
Na rua pode ser o cantonês, mas quem vai para a escola tem de aprender mandarim.
Macau vai ser um sítio onde os futuros dirigentes chineses vão ser formados e há a questão tecnológica e das universidades.
– Afirma, no artigo, que as autoridades de Macau estão a dar novas directrizes à população para que esta tenha novas referências identitárias. Estas mudanças não acontecem espontaneamente?
Diria que poucas coisas são espontâneas nos chineses.
Mas é uma imposição numa lógica de reposição de valores nacionais.
Não falamos de uma identidade espontânea.
O que está na agenda é que temos de ser chineses, mas isso sempre esteve.
– O seu artigo deixa também a ideia de que a mudança de identidade passa também por alterar a ideia de que já não se pertence a um lugar dominado pelo jogo.
O jogo vai mudar, e há sinais disso.
Veja-se o paralelismo entre a brecha que se abriu no jogo e a construção da tecnologia na Ilha da Montanha, com a criação de novos empregos.
A aposta será na tecnologia e nas PME, mas não sei se isso resulta.
Para quem está atento, o desenho está feito.
Mas Macau tem a tradição do jogo desde os primórdios, que não tem nada a ver com o pensamento político.
Sempre foi uma terra de pecados.
Andreia Sofia Silva.
Jornal Hoje Macau, 21 de Dezembro de 2021.
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