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DISCURSO DO DIABO
POR MONDE DE UMA CERTA MARGARIDA QUE O ABANDONOU
Um dos meus primeiros trabalhos filológicos com textos medievais foi a edição da «Vida de Santa Pelágia», que encontramos num dos códices alcobacenses actualmente incorporados na Biblioteca Nacional de Portugal (antes estava na Torre do Tombo, com a cota Alc. CCLXVI/Ms. Liv.ª 2274, fls. 74v-82v). O meu trabalhinho foi publicado, junto com outros do mesmo cariz, na «Revista Lusitana» (nova série, n.º 4, 1984), dirigida pelo meu Mestre Lindley Cintra.
Trata-se de uma história hagiográfica, e nela se narra a vida de Pelágia, uma belíssima e riquíssima meretriz («mulher pública») de Antioquia que, mercê das maravilhas e competências de que era mestra e senhora, todos conheciam pelo nome de uma pedra preciosa: «Margarida». Porém, certo dia, ao ouvir um discurso do bispo local, a boa da Margarida resolveu abandonar tudo e converter-se, sendo prontamente acolhida num mosteiro – de onde pouco depois viria a desaparecer para se tornar num dos mais belos casos de travestismo da história do cristianismo primitivo (abreviando: vestiu-se de homem, foi pela calada da noite para o deserto como o eremita «Paio» (Pelágio > Paio), onde anos mais tarde viria a morrer com ares de santidade – ares esses que se tornaram ainda mais arejados quando aqueles que lhe preparavam o cadáver para as exéquias verificaram que aquele santo eremita Paio era afinal uma mulher. Pelágia, claro…).
Ora bem, quem não gostou nada da primeira destas reviravoltas de vida foi o diabo que, na noite da conversão, pronunciou um discurso patético que o autor (na verdade, o tradutor português, talvez Fr. Hilário da Covilhã) assim nos apresenta:
«E nós, tomado o nosso cibo e manjar, o diabo apareceu, nu, com as mãos encravelhadas sobre sua cabeça, e com grandes vozes e brados dizia [dirigindo-se ao tal bispo que com o seu discurso dera a volta à cabeça da frondosa Margarida]: – «Ó quanta violência e injúria padeço deste velho decrépito! Não te abastava trinta mil mouros que me per força de baptismo tiraste e ofereceste ao teu Deus? Não te abundava a cidade de Heliópolis, que em outro tempo foi minha, e todos quantos em ela moravam me adoravam, e os quais me tiraste e baptizaste e consecraste e deste ao teu Deus? Não te contentaste de muitas e desvairadas nações de gentes que me tiraste e baptizaste e juntaste à lei do teu Deus? E agora sobretudo tiraste a minha mui grande esperança, Paia, e a tens contigo… Ó velho mau, quanta força me hás feita!, jamais adiante não poderei suportar as tuas obras, feitos e artes! Maldito seja aquele dia em que nasceste, que assim és a mim contrairo! Porque as tuas lágrimas são mui grandes rios e regatos que dão e empuxam e derribam a minha casa e de todo o fundamento a destroem!…» Estas cousas todas e outras semelháveis com mui grandes vozes e prantos e choros o diabo dizia, entanto que todos os outros bispos e a mui honrada abadessa Romana, sua madrinha, e sua filha, Pelágia, as ouviam. À qual o diabo se tornava e dizia: – «Ó amiga minha e senhora Pelágia, que tão grão mal é este que fizeste? Por certo tu seguiste e és semelhável a Judas! Ele, feito apóstolo e em muita glória e honra posto, o seu próprio senhor Deus traiu e vendeu! E tu, per mim posta em muita honra e nobreza, fizeste a mim semelhável…»
Mas a já santa resistiu aos avanços do diabo. Porém, conta-nos o autor, «Depois disto dous dias, dormindo Pelágia com sua madre Romana, veio o diabo e disse: – “Ó minha senhora e amiga Margarida, que mal te hei eu feito? Por certo eu te ornei e afeitei de muitos ornamentos e de muitas e nobres pedras preciosas. Eu te dei muito ouro e muita prata e outras muitas riquezas, rogo-te que me digas em qual cousa te contristei e fiz o que não devera… Eu prestes sou pera te satisfazer, contanto que me não leixes nem desempares e não seja feito opróbrio e doesto aos cristãos!”. A serva de Deus, quando isto ouviu, soprou e cuspiu o diabo e disse: – “Ó diabo, eu já te renunciei e renuncio!”» – e por aí abaixo, como se pode imaginar, até que ele desandou de vez.
Confesso que até senti dó do pobre diabo.