leitura obigatória:::::::DIANA ZIMBRON MAGISTRAL SOBRE O DIÁRIO DE UM HOMEM SÓ

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Quando apresentei, pela primeira vez, um livro de Chrys, o volume VI da série ChrónicAçores, fiz questão de frisar que esse não era o último, apenas, na altura o mais recente, e que o autor já teria mais 200 crónicas na gaveta para uma próxima publicação. Fizeram-se caros, ele e a Helena, riram como se não achassem provável. Pois bem, entretanto, o sétimo já anda aí e cá está o ChrónicAçores volume 8: Diário de um Homem Só, uma viagem interior.

E este livro, como o título indica, em formato de diário, não vive de crónicas da gaveta, embora inclua algumas, já publicadas em outros volumes e outros contextos, a propósito de temas que vão ocupando a mente do autor. Pelo contrário, acompanha o dia-a-dia de um homem na sua recente e triste condição de viúvo, durante aproximadamente um ano. Inicia-se num período de grande tensão emocional, com o agravamento do estado de saúde da sua esposa, em dezembro de 2023 e relata-nos episódios reais, dá voz a um drama que preferíamos que fosse ficção. Que nos é próximo demais. Que mal podemos e não queremos imaginar.

O desespero da luta contra o tempo. Os constrangimentos e dificuldades de lidar com a logística e com as necessidades mais básicas a satisfazer. O esvair da imagem que se tem de um ente querido. De um ente muito querido. O mais querido de todos. A companheira de uma ou várias vidas.

Como ela quase deixou de comunicar, como deixou de ter energia, deixou de se interessar por pequenas coisas e abandonou os seus hábitos, num esforço insuportável para o mais simples e nada devia ser mais simples do que respirar.

Também vivemos, através das palavras do autor, os altos e baixos. As pequenas esperanças de recuperar alguma mobilidade. E, depois, a aceitação. A espera.

O simbolismo e significado de um chocolate por comer.

O sentimento de estar à mercê de algo muito mais forte, imprevisível e, esta palavra surge amiúde, ao longo do livro: inelutável.

Uma vivência demasiado real, demasiado íntima, demasiado dolorosa. A Visita da Saúde, mais um alto. Depois o derradeiro baixo.

Como custa morrer. Como custa viver.

O autor leva-nos pela mão, — já anteriormente o fez, por paragens mais longínquas, mais agradáveis ou, pelo menos, mais ligeiras — desta feita, através de um processo complexo de luto. Mostra o feio e o horrendo. Para que saia fortificado, tal como nos explica, e cito:

“a única forma de ser invulnerável é ser quase totalmente vulnerável, mas quanto mais vulnerável se é, mais capaz se é de sofrer as dores, humilhações e desaires, e assim serás capaz de enfrentar qualquer audiência. As pessoas devem comprometer-se a contar a sua história sem cuidarem do número de pessoas que a vão ler ou ouvir.” (Fim de citação)

A relatividade do tempo tem o condão de infligir chagas físicas. Enquanto 29 anos, vividos em comunhão com a sua esposa, pareceram passar num ápice, agora, cada hora como que dura 29 longos anos.

Na sua dor, desvia momentaneamente o foco para a busca do conhecimento, a racionalização, procurando organizar os seus sentimentos, de modo a conseguir continuar a funcionar.

Logo nos apresenta ao conceito de “individualidade dolorosa”, desenvolvido por Susan Sontag, em que a solidão introspetiva teria efeitos construtivos na eloquência. Não que Chrys tivesse falta dela. Mas entenda-se esta reflexão como manifestação da esperança de que, de algo tão mau, pudesse vir algo minimamente positivo.

É preciso aprender a viver na nova realidade. O contraste é muito bem descrito no excerto que se segue:

“com a Nini encontrei a minha razão de estar no mundo, era o meu mundo, o dela, o nosso, e era um mundo lindo, nadávamos nos dias, contra marés e tsunamis, bebíamos o chá doce de todos os anos juntos a que ela acrescentava sempre dois pacotes de açúcar pois nunca era suficientemente doce. Acordávamos com o chilrear dos pássaros, por entre ventos e tempestades, chuvas e derrocadas, marés gigantes e nevoeiros cerrados, nesta bruma húmida que caía pelas paredes da casa. Viajámos pelo mundo, dele fizemos o nosso lar, sem fronteiras nem passaportes, voando nas asas da utopia, criámos encontros, publicámos livros, unimos pontes e continentes, e quando estávamos a chegar ao cume dos nossos sonhos, abriu-se o alçapão da vida e sem apelo nem agravo, sem pedir licença, sem dó nem piedade sugou-te e deixou-me suspenso neste abismo que hoje são os meus dias, iguais e vazios.” (Fim de citação)

Tal como os seus dias, as páginas deste diário enchem-se das “minudências de dias vazios”. Os formulários, os pedidos, os certificados, as voltinhas, os dísticos, as contas, os impostos, as despesas. Burocracias ridículas, igualmente inelutáveis. Sobrevivência autómata, ultrapassando obstáculos a curto prazo.

“A vida é uma greve de serviços mínimos,” diz o autor.

E apercebendo-se do pouco que isso é, para Chrys, torna-se essencial o lançamento de metas, como quem projeta um gancho, na ponta de uma corda, para dela se puxar, para se fazer avançar, ou apenas para se manter de pé. “Dar ao mundo as tuas obras, Nini. Realizar o colóquio em Santa Maria, como planeámos juntos”. Aqui, uma sobrevivência motivada por objetivos a médio prazo.

Ao mesmo tempo, a sobrevivência à base de memórias adubada pela fertilidade de outrora. Os acasos que lhes guiaram os passos, as peripécias, as pequenas implicâncias, quem as não tem.

 

Felizmente as suas fortes convicções ajudam a manter vertical a orientação corporal, como relembra o próprio, nas seguintes declarações:

Rezam as crónicas que sou moderadamente otimista há décadas, baseado no princípio de que as coisas podem sempre ser piores, mas também podem melhorar”; e “Uma das coisas que me mantém vivo é a idealidade, além de económica tem funções terapêuticas importantes.” (fim de citação)

Cá e lá, no seu estilo bem conhecido, laivos de humor também sobreviveram e despontaram, nas suas memórias, nos comentários e escolha de partilhas. Uma dessas, cito:

“Estava em Lisboa numa das minhas incursões a Portugal, e um primo direito recém-casado com uma menina muito bem da Linha de Cascais, queria impressionar-me com a casa, a riqueza, a mulher cor-de-rosa e tudo o mais para australiano ver. Ao jantar iluminado por música clássica e ao som da romântica luz de velas, em castiçais de prata maciça, colocam-me (já servido) um prato de comida. Iria ficar a deliciar-me durante longos minutos. Passeava o garfo em círculos concêntricos ou em espiral, movimentos entrecortados com o saltitar da faca, esboçando novos bailados ou desenhos no molho viscoso e escuro. Imagens que a luz das velas não deixava penetrar…O cheiro intenso e a consistência eram óbvias, maldito polvo. Lá se fora a cerimónia, antigamente denominada “das nove horas”. A jovem esposa foi, de emergência, meter no micro-ondas um bife a descongelar. Seria este o primeiro e único jantar em casa do primo, quer nesse casamento quer no seguinte. Ainda hoje me interrogo por que nunca mais fui convidado.” (fim de citação)

 

Sempre provocatório, porém com empatia singela pela morte de uma paroquiana da sua freguesia, em plena missa, diz” Como ateu, diria que deus estava impaciente, mas poderia ter esperado um pouco, pelo fim da missa para a chamar ao seu encontro.” (fim de citação)

 

Pouco a pouco, no contratempo de tomar um copo de terapia para aguentar, no intervalo de mudar os passe-partouts de sítio e arquivar bibelôs, com esperança que a mulher lhe venha ralhar, Chrys mostra-nos a sua natureza e aquilo que o move. Pois como ele bem descreve:

Todos conhecemos o perigo dos vulcões endormidos. Não podem ser perturbados, tal como os ursos hibernados não podem ser molestados no seu descanso. Nunca se sabe o que podem fazer quando enraivecidos, perseguindo os humanos como se fossem presas fáceis, enquanto os vulcões derramam a lava sob a forma escrita, expelindo raivas ancestrais incontidas, sofrimentos amarfanhados, dores insofridas, paixões por materializar e tudo o mais que temporariamente calaram à espera do dia do juízo final, em que pudessem falar como se não houvesse amanhã, como se tudo tivesse de ser dito já hoje e agora, aqui, sob pena de se perder o momento, essa janela do tempo que nos permite, por meros instantes, ser quem realmente somos, sem qualquer máscara ou peia social.” (fim de citação)

 

Neste livro, julgo que mais do que nos anteriores, raivas ancestrais são expelidas em chibatadas breves e assertivas. O autor chama falsos aos falsos, parolos aos parolos, escroques e vígaros a quem de direito, falhado a uma figura pública. Revela quem lhe estende a mão e quem lhe volta as costas.

Já dizia o ditado que mais vale um bom vizinho ao perto do que um mau parente ao longe.

Nesta narrativa de perda, o autor assume que Helena lhe faz falta de muitas formas. O yin perdeu o yang ou vice-versa. E a função moderadora, agregadora e revisora da esposa revela realmente a sua ausência. Imagina-se que parte destas traulitadas não teriam passado no seu filtro. Possivelmente, no que toca à parte feia e suja das relações familiares.

Outras, mais inócuas não deixam de ser engraçadas. Por exemplo:

“Esqueci-me de noticiar que o Telmo há dias postou a imagem duma mota para combater a meia-idade, tinha idade para ter juízo, devia ter feito isso há 20 anos e não agora…”

Cumprindo com a sua função jornalística, o autor noticia assim, num diálogo com a esposa, como se esta o fosse ler, na secretária ao seu lado, no escritório da falsa. Aliás, dirige-se a ela ao longo da obra, mantendo-a, deste modo, perto de si e perto de nós, para que não caia no esquecimento. Mas, mais do que isso, num processo que apenas atribuímos aos filmes, pressente a mulher ao seu lado, sentindo a sua permanência, nos hábitos de 29 anos. Como se ouvisse, ainda, as suas recomendações, à saída para ir à farmácia. E parecendo dizer:

“Nem crer, nem deixar de crer. Pelo sim, pelo não, não me demoro.”

No seu percurso, Chrys pratica a escrita como principal forma de autocuidado.

A certa altura, sente-se na coragem de visitar a sua terra, lá em “Portugal” (palavras dele) — numa “Uma escapadela a Portugal” — e vai lá à Freguesia da Eucísia, que insiste ser tão pouco pomposa como a Aldeia da Lomba da Maia.

Vá-se lá perceber porquê, gosta de chamar umas coisas pelos seus nomes e outras não. Ou talvez se perceba, conhecendo o seu hobby provocatório. De terras portuguesas, partilha a seguinte análise acutilante:

 

Aqui a saúde não tem grandes centros nem urgências, desertificada como as terras e terriolas, sem serviços nem gente. Ter um AVC aqui é meio caminho andado para o cemitério, mas vamos com boas vistas. (…)

Há estradas, vias rápidas, as velhas N-215 e a N-315, foram asfaltadas, mas não há gente e o movimento é tão diminuto como há 60 anos. (…)

Agora que há meios, não há gente para usufruir deles que tanta falta faziam quando estas férteis terras produziam tanta agricultura (e a Europa suspendeu). Custa ver estas encostas pejadas de oliveiras, inúmeras árvores de frutos, sem vivalma para as apanhar. Tanto que isto podia ser celeiro da nação, nem gente há para tratar delas. Dizem-me que a amêndoa de há 2 anos ficou armazenada sem se vender a preços irrisórios que nem cobriam as despesas da apanha.

Dos emigrantes que nas últimas décadas usaram para as colheitas, dizem-me que os ucranianos são os mais voluntariosos, já se foram os romenos de triste memória e vieram os búlgaros, igualmente uma desgraça. Portugueses nem vê-los.” (fim de citação)

 

Posteriormente, uma reflexão que passo a ler:

 

E já passou uma semana sobre o meu regresso da aldeia, revigorante, mas simultaneamente trouxe matéria para cogitação. Hoje os jovens (os meus filhos são disso exemplo) não conhecem a família nem têm memórias de infância a perpetuar e marcantes como as nossas. De que se vão lembrar quando tiverem a minha idade? Dum jogo de GameBoy? dum jogo de internet, dum torneio PlayNesti que venceram? Sem recordações de família alargada de Festas de Páscoa ou Natal em famílias com primos e tios só lhes restam os jogos.” (fim de citação)

 

Para além das reflexões a que nos obriga, de indole económica, pessoal e social, Chrys demonstra como os fenómenos naturais têm o poder de alterar o curso da história. Enriquecendo este difícil ano de vida, para seu e nosso benefício, com relatos da Subversão de Vila Franca do Campo, incluindo palavras de Gaspar Frutuoso.

Recupera e recicla material anteriormente utilizado, conforme vão surgindo temas dignos de nota. Alterando ligeiramente o discurso, apurando um ou outro recurso linguístico, como se dissesse: “a ver se consigo contar isto de uma maneira diferente. Vá, agora já passou a mensagem?”

Ao mesmo tempo, vai-nos dando conta do seu espírito e da sua sujeição a ações externas, a saber o estado do tempo ou contactos e convites que lhe estendam.

Como bom jornalista que é, faz apontamentos de sismos e intempéries na ilha. Entre as idas à farmácia — onde, pelo sim, pelo não, não se demora — e as irritações com os bolardos no parque de estacionamento do Hospital, dá conta, de recordes de temperatura que se sucedem. Numa narrativa bem documentada, que lhe é característica.

Se tivermos a pretensão de que, no futuro, alguém dê importância a seja o que for, a obra de Chrys será um tesouro para os historiadores dos próximos séculos.

Como o sino da igreja, do seu posto de observação, o autor pauta casamentos e funerais da sua Aldeia.

Sempre com um olho, crítico e analítico, no mundo, reporta acontecimentos desportivos, acidentes de aviação, guerras, fogos e assuntos mais ou menos sérios e preocupantes. Das suas observações, passo a citar algumas:

Um Estado que deixa tribunais, conservatórias, e demais serviços públicos em Ponta Delgada (e em todas as ilhas) ao abandono, ao ponto de chover lá dentro, caírem tetos, estarem salas fechadas e os processos à espera de navegarem se chover muito, esse Estado não merece os impostos que arrecada.

As escolas, mesmo as mais novas, parecem precárias, dada a falta de manutenção, a deficiente construção, infiltrações, falhas estruturais e falta de verba para funcionarem em condições mínimas. No ensino falta tudo, dantes faltavam os bons resultados agora faltam professores, faltam assistentes operacionais, e até faltam (cada vez mais) alunos.

Madeira ardida é papel barato, mesmo que seja à custa de uma centena de vidas.

A versão oficial: o fogo de Pedrógão Grande começou com um raio numa árvore em Escalos Fundeiros. Com um nome destes não havia de cair lá um raio!

Quando me levantei a 6 de novembro do ano da desgraça de 24 já a raposa estava no galinheiro e as ovelhas tinham votado no lobo.

 

Na sua narrativa, Chrys explica-nos que a história se repete e como ela se repete, por exemplo com uma comparação entre a ocupação da Ucrânia e os acontecimentos que levaram Olivença.

Ademais, ao longo da sua obra, sobressai um sentimento de desilusão pela aplicação coxa da democracia. Foi para isto que lutámos, foi esta a nossa herança? Para isto apergoámos liberdade? E cito:

Cheguei agora da praia (Moinhos), a favorita entre todas as parcas nesgas de areia da ilha (Pópulo e Milícias desgostam-me ambas pelos nomes pejados de democracia malcheirosa). Perdão, que alguém ao ler estas linhas (agora que o Governo guarda todas as nossas mensagens, nunca se sabe a que mãos isto irá parar) pode pensar que não perfilho dum amor doentio pela democracia. Mentiria se não o afirmasse aqui, só que esta democracia à portuguesa é tão triste e pequenina como o país. Sinto saudades de democracias grandes (como a australiana) e de países desse tamanho…” (fim de citação)

 

O autor enfatiza e demonstra como falta, ao país, tal como à região, visão a longo prazo em todos os sectores. Tapa-se o sol com a peneira. Compra-se uma pistola para dar silicone nos buraquinhos, mas que seja a pistola mais cara e portentosa. Linda, invejável. Recomendo a leitura da crónica “VARINHA MÁGICA PRECISA-SE”, que muito bem exemplifica esta crítica. Chrys está convicto de que é possível fazer melhor, se houver humildade de tentar procurar os bons exemplos. Os bons exemplos, desta feita, que dos maus já nos fartámos.

Inspirada pelo autor que vim modestamente atentar — e tendo todo o cuidado, porque, cito: “As visões críticas ou não conformadas aos cânones podem acarretar sérios riscos para a saúde mental dos seus autores” —deixo uma notícia que sendo da minha área me interessa particularmente:

“O Governo regional aprovou, no passado dia 14, a aquisição de 700 painéis interativos e 4.500 computadores portáteis, visando a modernização das unidades orgânicas do sistema educativo regional”, enquanto isso, não há solução à vista para a falta de pessoal auxiliar nas escolas. Ou talvez seja essa a solução! IA em grande plano no quadro interativo: “menino X, faça favor de limpar o ranho”; “sinta-se servido de mais macarrão”; “não morda a sua colega”.

Deixo também duas recomendações: 1- preferencialmente, não enviuvar; e 2- não ler as crónicas “festivas” do Chrys, realismo exacerbado, chama-lhe.

 

Numa última nota, mais artística e colorida, volto a citar Chrys Chrystello:

 

“deparei com uma camioneta de passageiros estacionada aguardando o começo da semana para voltar a trabalhar. Acorreume a ideia peregrina de como seria uma aventura “pedir emprestada” a carripana, começar a percorrer as aldeias (ditas freguesias nas ilhas) e gravar as histórias que os passageiros fossem contando. A viagem não teria destino. Duraria tanto quanto as histórias dos passageiros. Não seriam cobrados bilhetes. Pararia em todos os locais, podendo deterse para que fossem contadas as histórias e lendas do local onde paravam. Que livro maravilhoso não daria esse compêndio de histórias apanhadas ao acaso daqueles que tomassem o autocarro dos sonhos.” (fim de delírio)

 

O autor afirma: “Já vivi muito e intensamente as vidas todas que me foram proporcionadas” E eu acredito. Mas vamos nesse autocarro? Uma breve viagem.

 

Pelo sim, pelo não, não se demore.

 

 

 

 

 

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