José Martins Garcia por Urbano Bettencourt analisado por Santos Narciso

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José Manuel Santos Narciso
José Manuel Santos Narciso Obrigado, caríssimo Urbano Bettencourt!
Aqui fica o texto, “empobrecido” pela falta dos itálicos que o facebook não permite:

“O Medo”, “Lugar de Massacre”
e “A Fome”

Leitura difícil, exigente e por vezes demolidora. José Martins Garcia. Um dos expoentes da literatura nos Açores, no século XX.
Em boa hora a Editora Companhia das Ilhas, do Pico, resolveu dar corpo a este projecto, com coordenação do seu Editor, Carlos Alberto Machado e Urbano Bettencourt que, com um abraço de uma hora bem passada, me proporcionou a sua (re)leitura, no caso de A Fome e de O Medo, e pela primeira vez, o conhecimento do fortíssimo Lugar de Massacre.
Na vida, em todas as coisas, não é de bom conselho fazer apenas o que se gosta. Muito mais importante é fazer o que é necessário para conseguir os objectivos a que cada um se propõe. Do mesmo modo, na Literatura, não sabe o que perde aquele que só lê o que gosta, escrito por pessoas de quem gosta.
Isto aplica-se a José Martins Garcia, picoense da Criação Velha que fez do mundo a sua casa, nos Açores, no Continente, em África e nos Estados Unidos. Ele é um escritor duro, difícil, dono de uma ironia quase tirânica e de uma força satírica só própria de uma personalidade controversa e inquieta, capaz de fazer sofrer, odiar e amar.
Ler José Martins Garcia é sentir algo diferente que nos prende e amarra, mas ao mesmo tempo que nos liberta de preconceitos e de ideais vendidos ao sabor dos tempos políticos e sociais.
Senti isto mesmo, ao longo de semanas. Fui bebendo, devagar, saboreando o fundo e a forma, discordando em muitas coisas, mas admirando e venerando esta maneira de escrever que é única e algumas vezes sublime. O domínio da Língua, o encadeamento das imagens e o desnudar das emoções são os pontos fortes deste escritor.
Como disse Urbano Bettencourt, a obra de Martins Garcia “não provoca uma leitura empática ao primeiro momento”, sendo necessário “estar atento ao que é, de facto, uma perspetiva satírica, em outros casos irónica, sobre determinada realidade, provocando sempre a sátira uma certa reacção de desconforto”.
Neste projecto que pretende reeditar as obras daquele escritor, Carlos Alberto Machado e Urbano Bettencourt acharam conveniente fazer anteceder cada livro de um trabalho de apresentação e análise de personalidades que nos deixam um notável testemunho, essencialmente porque os textos aparecem numa perspectiva de preparação para a leitura, não se cingindo ao academismo para o qual muitos leitores não estão preparados.
O escritor Alexandre Borges, foi o escolhido para a introdução ao livro O Medo. E que introdução! Leva-nos aos dois planos do romance: o ambiente revolucionário da capital, em 1974/75 e os Açores, no final dos anos 50. E duas perspectivas do mesmo protagonista, com visões dos sonhos de 20 anos e da realidade aos 40. Os exageros da Revolução, os heróis de rua e do papel impresso, ou uma Evelina baixando os olhos na igreja da vida.
Como escreve Alexandre Borges, “outros cantaram e cantarão as glórias de Abril, Outros a maravilha da bruma açoriana. Aqui (no livro), quem quiser entrar é favor pendurar o deslumbre à porta. E deixar-nos em sossego com os nossos cigarros e o nosso pessimismo”.
A João Nuno Almeida e Sousa coube a introdução ao Lugar de Massacre. E, sem meias medidas prepara o leitor para o que aí vem: cartografia de uma “juventude condenada”, reduzida a arrastar-se em “dias de degredo”, na omnipresente lama da Guiné, emparedada sem paredes, num mato “fora do mundo”, tendo por esperança algum “milagre” que falha, exausta, alucinada, “borrando-se nas armadilhas chamadas latrinas, quando não na merda do próprio susto”. E João Nuno Almeida e Sousa recorda que não é por acaso que este livro é dedicado “a todas as vítimas da paranoia e da incompetência dos déspotas, caídas para nada no campo do dever e do absurdo”. Um milhão de combatentes, cerca de duzentos soldados açorianos mortos… Para nada!
Martins Garcia eleva à máxima potência a raiva incontida pelos anos de Ultramar. Como leitor, este é para mim um romance diferente. Porque eu também estive dois anos na “lamacenta Guiné”. E porque tenho acompanhado, na medida do possível, a Literatura que se tem vindo a produzir sobre as guerras coloniais, posso dizer que este Lugar de Massacre é o retrato de uma realidade superlativamente ficcionada. O exagero enforma um dilúvio de sentimentos contra a política dos gabinetes que faziam a guerra do ar condicionado para morte, desgraça, ruína física e moral de tantos jovens tornados álcool, sexo, sangue e fúria, durante tantos anos!
Finalmente, outro romance desta trilogia inicial: A Fome! Com texto introdutório de Luiz Assis Brasil que, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, no Brasil, escreve que “o leitor de A Fome, tal como nas sua obras citadas, é cativado pela excepcional qualidade do texto que nos encaminha por dentro de um labirinto de episódios que podem ser lidos de maneira independente, desde que se tenha a chave temática em que se inserem”.
Assis Brasil classifica este romance de “magistral”. E não é para menos. Se me é permitida uma opinião de leitor, este é um dos mais belos romances que já li na minha vida, e nele vejo Nemésio, nele sinto Eça, mordaz, satírico e adjectivante, e nele sinto as paixões de Camilo. Nunca vi, nunca li e nunca senti nada tão bem escrito, tão vivo e tão real como o desejo do António Cordeiro por uma costeleta…
A saga de um estudante boémio e faminto, os quartos escuros, bafientos, cuja luz se media pelos trocos que sobravam do vale que tardava a chegar é o mais belo retrato que se pode traçar de uma “descida aos infernos”. Assis Brasil fala mesmo da dedicatória do livro “à Damiana” (Damiana que conheço desde há muitos anos, nas lides do Correio dos Açores) e refere que este livro, sem ser biografia, pois que de um romance se trata, tem “dados coincidentes, como o nascimento no Pico, a ida para Lisboa, a Universidade, a militância política, a convocação para o serviço militar e muito mais”.
Em Dias de Melo habituei-me a ver um hino ao Pico, ao mar e aos baleeiros, de tal forma que não penso no Pico sem ver Dias de Melo e os seus livros. Mas tenho de confessar que este Martins Garcia é também um hino universalizante da nossa “ilha mágica”, como se pode ler no magnífico espaço do “retorno do baleeiro”, sinos a repicar e foguetes displicentes. Tudo e sempre carregado de um ar crítico e que não se compadece com lugares comuns nem tradições sem sentido.
A Companhia das Ilhas presta assim mais um importante serviço à cultura dos Açores. Estes primeiros três volumes foram apresentados em Julho deste ano e, pelo que sei, outros se seguirão, com apresentações e análises de outros vultos da nossa literatura, como Joel Neto, Manuel Tomás, Miguel Monjardino, Nuno Costa Santos, Renata Correia Botelho, Rosa Maria Goulart e Vamberto Freitas.
E termino, citando David Mourão-Ferreira:
José Martins Garcia, nascido em 1941, no Pico e falecido em 2002, em São Miguel «deveria ser hoje saudado como o do escritor mais completo e mais complexo que no último decénio entre nós se revelou; (…) com igual mestria tanto abrange os registos da mistificação narrativa como os da exegese crítica, tanto os da desmistificação satírica como os da transfiguração telúrica, e que sem dúvida não encontra paralelo, pela convergência e concentração de todos estes vectores, na produção de qualquer outro seu coetâneo.»
Santos Narciso

Sobre CHRYS CHRYSTELLO

Chrys Chrystello jornalista, tradutor e presidente da direção da AICL
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