Francisco Madruga · AS VINHAS VELHAS DA MINHA MÃE!

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AS VINHAS VELHAS DA MINHA MÃE!
A Vida nasce todos os dias.
A Vida renova-se, preserva-se e alimenta-se no conhecimento, no estudo, na prática do quotidiano e na luta por uma sociedade mais justa.
A minha mãe foi tudo isto e o mais que eu não consigo escrever. Ele há coisas que ficam no nosso íntimo, porque a intimidade é o luto, é o beijo, o abraço, a carícia e o afagar do cabelo. O íntimo é a lágrima, a dor no peito que dói. O íntimo é a merda do Covid que nos isolou e nos privou dos afetos, do colo e do ombro.
A minha mãe nasceu num tempo em que ir à Escola era um luxo!
Não sabia ler nem escrever. Estava escarrapachado no BI “Não sabe assinar”!
Veio Abril e exigiu ser ensinada.
Abriu contas, assinou, esqueceu-se e penitenciava-se por isso.
Participou sempre na luta por uma vida melhor, para ela, para a sua família, mas fundamentalmente para os outros.
Levou ao limite os sacrifícios para dar aos filhos as condições que não teve na vida, nos estudos e na perceção de que era necessário intervir para transformar.
A minha mãe era um exemplo. Foi cinco vezes a Fátima a pé. Uma a pão e água e duas sem falar. Quando lhe perguntávamos por quem eram as promessas ela respondia:
– Prometi, mas não foi por mim!
Grande mãe que eu tive!
Quando lhe chamávamos à atenção para que não necessitava de trabalhar, ela respondia:
– Se não estamos neste mundo para trabalhar então andamos cá a fazer o quê?
Grande mãe que eu tive!
Quando tomou a peito Abril, fez-se militante, participou, influenciou, não falhava uma manif, nem um 25 de Abril ou um 1º de Maio.
Às vezes, não percebíamos se a ida era pelo convívio ou pela convicção. Invariavelmente as caminhadas paravam na Conga ou no Pedro dos Frangos.
Quando lhe perguntávamos sobre as motivações, ela respondia:
– Eu não luto por mim que não preciso, mas pelos que nada têm.
Grande mãe que eu tive!
O padre que fez a cerimónia, disse-me que conhecia muito bem a minha mãe.
– Sabe, ela era muito interventiva. Um dia, eu fazia a apologia da ajuda aos pobres e ela pediu para falar no meio da homilia. Pensei que se estivesse a sentir mal e fui junto dela. Quando lhe dei a mão ela disse-me:
– Senhor Padre, sabe onde estão os pobres? Estão ali no 5 Quinas!
O Sacristão por trás ria-se.
– Eu questionei-o o que era o 5 Quinas, ao que ele respondeu que era o café da esquina.
Mas ela não se calou, insistiu que não via na Igreja pobres e que havia pessoas que até iam de táxi buscar as esmolas.
Olhe, foi a partir daí que tivemos mais cuidado com a distribuição.
Grande mãe que eu tive!
A minha mãe ajudou muita gente. Gente que se pirava de Portugal numa fuga precipitada a caminho de novos mundos ou simplesmente para fugir à Guerra Colonial. A sua casa era o refúgio, a pensão e a escola onde o meu pai ensinava todos os que vinham fazer exame para as forças militarizadas ou para a enfermagem.
A minha mãe deu a mão a sobrinhos, primos e amigos.
Ajudava desinteressadamente, pois sabia que era fundamental as pessoas terem oportunidade de estudar e trabalhar.
Veio o Euro e a minha mãe deu-lhe a volta. Não contava pelos dedos. Tinha uma memória e um cálculo mental que fazia inveja até ao final da sua vida.
Em época de eleições, mesmo quando eu me fazia esquecido, a seguir ao almoço ela perguntava:
– Então hoje não são as eleições? Tenho que ir votar!
– É verdade. São eleições, vamos lá votar!
Vamos tratar as tuas ideias, o teu apego á Liberdade e à Justiça Social com o carinho com que tratamos as tuas vinhas velhas.
Vamos continuar a ajoelhar ao toro das parreiras para as podar com carinho. Vamos limpar-lhe as lágrimas que brotam da enxertia, vamos tratar os freixos e os carvalhos centenários que nos dão o calor e a sombra. Vamos fazer as vindimas e o vinho. Vamos roçar os valados, preservar as paredes erguidas por mãos calejadas e sábias e manter as tradições. Vamos preservar a tua casa e a tua imagem, o teu exemplo e a tua sabedoria.
Vamos contar às novas gerações as tuas histórias e tua história de vida.
Que grande mãe que tive!
Felizes dos que conheceram a minha mãe!
Um obrigado pelas vossas palavras e pela vossa amizade.
Telmo R. Nunes and 10 others
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