finalmente Temo Nunes rende-se à mestria de Cristóvão de Aguiar

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Cara Paula Cabral, minha amiga e talentosa articulista,
Fruto da curiosidade que há muito me perseguia, assim como de avisadas sugestões que me foram chegando, dentre as quais, o teu apelo público em junho deste ano, lancei-me, recentemente, na leitura do I Volume da trilogia “Raiz Comovida”, de Cristóvão de Aguiar. Dir-me-ás que chego com atraso a uma obra de referência da literatura açoriana; ou que talvez devesse priorizar de outra forma as minhas opções literárias, ao que responderei, sem quaisquer constrangimentos, que tens toda a razão.
Não obstante, por saber tratar-se de uma leitura de relevo e, por isso, antecipá-la demorada, marcada, muitas vezes, por idiossincrasias linguísticas e outras dificuldades lexicais a quem, como eu, chega das bandas de lá, “das terras por salgar com entranhas de fogo”, optei, primeiramente, por ler outros textos do autor, nomeadamente a obra “Braço Tatuado”, almejando, dessa forma, entrar no seu universo literário, antes de me aventurar neste “A Semente e a Seiva”. Tolice minha, confesso! Não me custa adiantar (embora ainda não a tenha terminado) que não haverá o que nos prepare para a leitura deste livro: um verdadeiro tratado da linguagem, revestido por um brilhantismo literário como há muito não via. Obrigado, cara amiga, pela sugestão que me deste.
Conquanto não possa invocar as “razões afetivas” que te moveram até ao apelo, posso, todavia, concordar contigo quando a adjetivas de “magistral” e a classificas como uma “referência inestimável”, porque, em boa verdade, é disso mesmo que falamos.
Assim, e porque comigo resultou em pleno, atrevo-me, como tu, a deixar um estímulo à leitura, na esperança de que outros se possam sentir impelidos a ler esta maravilha da literatura açoriana.
“24 – Namoros de Janela Baixa
No tocante às raparigas casadoiras, era demais tamanha aperreação; pareciam freiras arrochadas no convento da casa; tudo quanto passa das marcas não dá muito certo; já lá diziam os antigos, com alguma razão, quem muito aperta, pouco arrocha; aperreadas dentro de quatro paredes durante dia e noite, só tinham licença de aparecer um nico à janela nas tardes pasmadas dos domingos e dias santos e, mesmo assim, nada de rédea solta, que as coriscas das mães eram umas cegonas, sempre de olho arregalado e nariz empinado, a farejar se havia mouro na costa, não fosse algum mais manhoso comer-lhe a filha de longe com olhares cobiçosos ou dar-lhe umas palavrinhas de boca pequena; mas a Divina Providência não se deixa dormir, e não há pior semente do que a da língua; o Ti Clemente Bufão tinha duas filhas gémeas, duas belas fêmeas, e o pai “gavava-se” de que não havia nenhum “fideputa” que se consolasse de as namorar e desfrutar, isto porque de uma vez bispou um fralda cagada qualquer rondando-lhe a casa, e o rapaz não era nenhuma peste, mas o Ti Clemente achava lá na sua que nenhuma das filhas regia para ele; vai daí, ao chegar ao fundamento de que o rapaz andava mesmo arrastando a asa lá pelas suas bandas, pregou as janelas da frente, e nenhuma das raparigas se podia chegar a elas; com as janelas pregadas a sete pregos, o Ti Clemente julgava que não podia haver mais dúvidas quanto a malicias de olhos ou falas de boca pequena entre eles; enganou-se redondamente; nunca mais houve, na verdade, a mais pequenina pitada de olhares trocados nem arreganho meiguiceiro de dentes; estava o Ti Clemente mui descansado e satisfeito com o seu tèsto proceder, quando, um belo dia, a mulher lhe veio dar a saber que ambas as filhas estavam cheias como vacas quase a parir; e mais, estavam pejadas do mesmo candeeiro de folheta, “inté” se dizia, por pilhéria, que uma delas estava de barriga do Divino Espírito Santo e o certo é que um dos “chinchins” ficou mesmo com o apelido de Menino Jesus; o Ti Clemente não queria acreditar no que ouvia à mulher e subiu aos arames da ruindade; ficou de cabeça desarrematada, queria à fina força pôr uma demanda em tribunal, mas, vendo que pouco ou nada amanhava, a não ser consumição e falatório ainda mais grande, pois o rapaz devia casamento às duas e só com uma se podia casar; com o desgosto, pegou o Ti Clemente em si e embarcou para a terra da América; uma das gémeas casou mais tarde com o rapaz que a tinha enganado, os pequenos tratavam-se por irmãos, chegando a zoar pela freguesia que aquilo era uma noite com uma e outra com a outra, o jogo da vez e outra, como no do pião – uma grande escândula que aconteceu na freguesia e neste ponto dou razão aos antigos quando diziam que quem muito aperta, pouco arrocha; se as raparigas tinham derriço que principiava nas festas do Divino ou nas da Senhora da Boa Viagem, penavam os olhos da cara para darem dois dedos de conversa com o noivo, que andava numa arredouça, para baixo e para cima, ou, “intance”, se as pernas pediam descanso, ia servindo de espeque a alguma parede ali ao pé, na mira de uma ocasião mais coisa e tal para despejar a saquinha dos sentimentos; as mais das vezes, era trabalho botado ao vento, e o rapaz ficava mais brabo que o mar das Calhetas, quando, por riba, lhe sopra o mata-vacas e não havia outro remédio senão esperar com paciência pelo Domingo que vinha […]
Cristóvão de Aguiar, “Raiz Comovida”, Ed. Afrontamento, págs. 129, 130.
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Paula Cabral

Telmo, muita alegria me dás com esta publicação e confirmação do gosto que tiveste na leitura de um dos maiores da nossa literatura! Não conheço, por enquanto, nenhum outro que soubesse usar de forma tão notável e consistente o nosso linguajar, elevand…

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