emigrantes 1989

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Férias de 1989
4. Os emigrantes
De Grijó, onde nos acoitamos para estes dias de sossego, até Macedo de Cavaleiros, sede do concelho, são apenas cinco ou seis quilómetros por uma estrada que se pode dizer boa pelos padrões do Nordeste. Nos arredores de Lisboa, pelo contrário, uma tal estrada mereceria àqueles malandros daqueles alfacinhas, quando muito, o nome de estradão. Tudo é relativo, pois. Ocorre-me aqui uma frase de Camilo Castelo Branco: «Não há país como este, em que tanto se respeite a poesia do passado, no tocante a estradas de Trás-os-Montes.» Vem no “Santo da Montanha”. Camilo sabia do que falava. Já assim era então e assim continuou e há-de continuar por muitos anos e bons, graças a Deus e aos ministérios. Cascais é Cascais, Trás-os-Montes é Trás-os-Montes, ponto final. Parágrafo.
Seja como for, para mim, afeito a viajar na minha terra com a alegria e o espírito curioso com que Garrett viajou na dele, a estrada é bem boa. E são só, como disse, meia dúzia de quilómetros.
Isso quer dizer que, quando o sossego fosse demais — ‘o que é demais é moléstia’, diz-se por aqui — e atingisse os limites insuportáveis da pasmaceira, me deveria sentir tentado a dar uma saltada à vila, para um pouco de movimento e agitação que, por contraste, me ajudasse a valorizar melhor a tranquilidade da aldeia. A verdade, porém, é que só lá vou para fazer compras, e apenas das coisas que não me é possível encontrar em Grijó. Bem pelo contrário, fujo de Macedo como o diabo da cruz. E se há terra que eu ame entranhadamente, é Macedo, acreditem: lá passei a infância e a juventude, e parte da idade adulta. A minha memória é a lugares e pessoas de Macedo que está atada com os laços mais tenazes, que nada nem ninguém jamais deslaçará. E todavia, em Agosto, fujo de Macedo a sete pés. Porquê?
É que Macedo em Agosto fica impossível, senhores! Fervilha de emigrantes ruidosos, que fazem inflacionar os preços, atropelam a gente no mercado, nas lojas, bancos e repartições, nos atravancam a rua com as suas voitures vistosas, nos atroam os ouvidos com o seu bárbaro e estridente linguajar.
Este último malefício é-me particularmente molesto. As madamas então, mais do que os messiús, são muito dadas a exibir o seu francês, de cambulhada com português quando o francês não dá para mais. A avaliar pela qualidade do português, o francês deve ser letal.
Juro que ouvi num supermercado de Macedo esta conversa entre duas madamas que lá andavam por entre as prateleiras, afadigadas nas compras:
– “Je ne me rappèle pas comment s’appele” aquela iauga pra botar nas batarias das biaturas… – diz uma, enervada com a amnésia.
– Será ‘stralizada? – aventa a outra.
– “Buàlá”! – sanciona a primeira, satisfeita, e lá parte à cata da iauga ‘stralizada nas prateleiras do supermercado.
(Ponto de ordem: a água requerida para a função não é a esterilizada, mas sim a destilada.)
Referirei ainda outro episódio, a que não assisti, mas cuja veracidade me garantem.
No banco, uma madama está ao balcão, a inteirar-se dos movimentos da conta e dos juros. No chão pousou um saco plástico, de que emerge a cabeça contrariada duma galinha viva, atada de pés e asas, mas que mesmo assim forceja por se libertar. Como o estrebuchar da ave a incomoda, vai-a admoestando, sem tirar os olhos do extracto de conta que o funcionário do banco lhe mostra:
– “Arrête, poule!”
A galinha porém não se aquieta, e dali a pouco torna a madama, num crescendo de impaciência:
– “Arrête, poule!”
E, como “la poule n’arrête próprias”, acaba por gritar, em cólera:
– Carvalhos te recontracosam-na pita, qu’assim m’está a tchatear!
Consta que a galinha assim já entendeu, e ficou muito quietinha dentro do saco. Virtudes do vernáculo!
Descontando as vezes em que me irrita esta algraviada presunçosa, sinto-me tentado a ser indulgente. Pois não é verdade que é gente que nada teve no passado, e que hoje tem quase tudo, incluindo duas línguas em vez de uma só? Que admira que usem o francês como quem usa um brinquedo? Que admira que queira agora “épater le Bourgeois” quem toda a vida foi “épaté” e justamente pelo “Bourgeois”? Que diferença é legítimo encontrar entre o emigrante que vem de França a falar françuguês e o brasileiro de torna-viagem que vem do Brasil a pavonear o sotaque melado do Português tropical?
Os emigrantes são insolentes, incómodos, barulhentos? Serão, alguns deles, não nego. Mas ponho-me às vezes a cismar que tremenda força civilizadora não podia ser esta hoste que regressa a Portugal todos os Agostos, se fosse capaz de assimilar, lá nos países onde labuta, os hábitos de limpeza, de cortesia, de pontualidade, de respeito pelos outros — numa palavra: a educação cívica de que tanto se fala agora em Portugal e que tão pouco se fomenta —, e se depois, em férias, fosse capaz de transmitir tudo isso pelo exemplo a quem cá ficou e tão carecido está.
Aqui atrás, ainda andei uns tempos a cismar que os emigrantes, para além da óbvia utilidade das suas remessas, poderiam ter esta utilidade civilizadora adicional. Mas confesso que perdi definitivamente essa fé no dia em que vi uma madama entrar pela ria de Mira até quase ao limite de ter pé e, com toda a sem-cerimónia, desatar a lavar os longos e sujos cabelos com “shampoo” ordinário, daquele que se vende em frascos de litro, ali mesmo onde banhistas nadavam os calores desse Verão.
“Buàlá”!
(Conclui amanhã.)
Férias de 1989
5. Os animais molestos
(Foto da internet)
Com a aproximação de Setembro, chega ao fim esta temporada de férias em Grijó. Melancolicamente (de uma melancolia que vem de estar no fim este estado de graça que são as férias, mas vem também de qualquer coisa com sabor a fruto sobre-amadurecido que já anda no ar, à boca de Setembro), começamos a arrumar os trapinhos e a juntar a um canto, para não esquecer nada, o garrafão de azeite, o saco de batatas, o cabo de cebolas e os dois ou três melões da horta, na esperança e na dúvida de que venha a caber tudo na bagageira do carro deixando espaço para as malas, malinhas e maletas que também têm de embarcar. Vila Real e o emprego esperam por nós. Vamos, pois, que el-rei manda trabalhar, não manda veranear. O estafermo do rei!
Sinto que, nestes últimos parágrafos, para que não se pense que tudo foram maravilhas, devo falar das minhas difíceis relações com a bicharada. Os animais, grandes e pequenos, domésticos e bravios, úteis e daninhos, são com efeito comparte essencial da vida rústica. Pois não há casos de porcos, vacas e jumentos que vivem no rés-do-chão e os donos no andar de cima, separados uns dos outros tão somente por um soalho de velhas tábuas mal ajustadas que deixam passar o cheiro a bedum e a estrume? Como ignorar os animais num meio onde eles são tão conspícuos e tão importantes ou mais do que as próprias pessoas? Não acredita o Leitor? Pois digo-lhe que sei de alguns fulanos que, se tiverem a mulher e a vaca doentes ao mesmo tempo, chamam primeiro o veterinário. Já vê.
Mas, de toda a arca-de-noé da aldeia, falarei aqui apenas dos bichos que me foram molestos, daqueles que fizeram esforços denodados para me arruinarem as férias em Grijó, e às vezes quase o conseguiram.
Começarei pela Mulata, a cadelinha da tia Micas. Quando a tia Micas nos vinha visitar, trazia com ela a Mulata, aliás uma cachorrinha linda, viva, meiga e brincalhona, felpudinha e negra de azeviche. Simplesmente, enquanto a tia Micas se retirava depois da visita, a Mulata ficava, engodada pelos nossos afagos. E à noite ia empoleirar-se no terraço das traseiras — que fica resvés com a janela do meu quarto —, que escolhera para posto de vigia e donde pela noite fora ladrava e arremetia contra tudo o que mexesse, fosse ele gato, cão ou um simples papel que farfalhasse rua fora tocado pelo vento. Via-se que estava orgulhosa e felicíssima no seu papel de nos garantir um sono tranquilo — ou pelo menos aquilo que ela considerava como tal. Mas nenhum de nós dava o devido valor a esta sentinela importuna, e mais de uma vez tive de me levantar enfurecido, a tropeçar nas coisas, tonto de sono, para a expulsar do terraço. Saía submissa, honra lhe seja feita, e provavelmente a cismar em como é grande a ingratidão dos humanos. Mas na noite seguinte lá estava outra vez a estramontar-nos o sono, o demónio da Mulata!
As vacas. Oh, as vacas foram outro dos meus pesadelos. Não quando passavam de madrugada, a chocalhar, caminho dos pastos. A essa hora, confesso que até gostava de ouvir aquele som bucólico das campainhas, que, longe de me tirar o sono, parece que mo propiciava. Lembrava-me o chiar dos carros na acarreja do pão, em tempos longínquos de férias em Alvites. Do que eu me queixo em relação aos bons ruminantes (o Leitor mais anojadiço pode, querendo, saltar este parágrafo) é que, desse-lhes lá a vontade onde lhes desse, à minha porta é que vinham depositar a bosta, pausadamente, uma porção aqui, outra porção um metro mais adiante e assim sucessivamente. Cheguei a supor-me vítima duma conjura bovina. Ou de vingança. Porquê à minha porta, santo Deus? Logo eu, que só como um bife quando o rei faz anos? É certo que tomo leite todos os dias, mas isso não deve ser motivo para retaliação por parte das vacas; na verdade, o leite elas até agradecem que lho tirem, quando trazem o amojo cheio a transbordar. Depois dei em pensar que as vacas deviam talvez ser do CDS, pois defronte da casa que pertence ao Professor Adriano Moreira, a bem dizer pegada à minha, nunca vi raças de bosta: limpinho como um salão de baile. Seria então uma provocação política?
Mas, de todas as criaturas do reino animal, foram os insectos — os mais mesquinhos de todos! — que mais me fizeram amargar certas horas de Grijó. Começarei pelas moscas, esses imundos porta-micróbios, que dir-se-ia não terem qualquer préstimo senão flagelar-nos e, dessa forma, ajudar a escancarar-nos as portas do céu pela via do martírio. Mas pelos vistos têm préstimo. Leio no Vocabulário português e latino, do Padre Rafael Bluteau, esta coisa espantosa: «Na Medicina servem as moscas de emoliente e resolutivo. Esmagadas, e aplicadas fazem crescer o cabelo; e por destilação se tira delas uma água, boa para as doenças dos olhos.» As moscas, hã? Quem diria?
Claro que, por muitos resolutivos e emolientes de que eu algum dia venha a precisar, não será às moscas que recorro. Tão-pouco jamais as esmagarei e empastarei com elas o couro cabeludo, mesmo estando como estou em fase acelerada de perda capilar. Quanto a água destilada de moscas para doenças dos olhos, estamos conversados. Tal é a aversão que dedico a esses infames insectos que nestas férias não perderam a mínima oportunidade de se introduzirem em minha casa e, uma vez instaladas, de exasperarem toda a gente com a sem-cerimónia com que pousavam em nós, na comida e sabe Deus onde mais. Claro que eu matava muitas, com grande furor insecticida, despejando sobre elas rajadas de “spray”, marimbando-me para o facto de estar dessa forma a adelgaçar um pouco mais a camada de ozono. Quer uma pessoa lá saber da camada do ozono, quando tem meia dúzia de moscas a perturbar-lhe a sesta! Mas tanto fazia dizimá-las como não. Diz o povo que ao enterro de cada mosca vêm vinte, e deve ser certo. Vêm vinte — e vêm para ficar. Creio mesmo que alguns funerais terão estado ainda mais concorridos. Foram as moscas a ruína de algumas sonecas pós-prandiais. Excomungadas sejam elas nas parafundas dos infernos, como diz a gente de Grijó!
Tão molesta quanto a “Musca domestica” é uma certa espécie de mosca campestre, mais pequena e prodigiosamente pegajosa, que vem atraída pelo cheiro do suor e mortifica a gente nos passeios pelo campo. Nós a sacudi-la duma bochecha, e ela, ligeira como o vento, a pousar na outra. Algumas destas moscas, indiferentes ao galhinho de freixo com que as procurávamos enxotar, arruinaram-nos passeios que prometiam ser gloriosos. O inferno as consuma também!
Finalmente, a senhora melga. Deixássemos a janela aberta ou fechada, era certo e sabido que por essas duas, três da manhã, aparecia ela. Um zumbido fino e uma insuportável comichão entre os dedos da mão, seu cevadouro favorito, eram o seu cartão de visita. Era só uma por noite, e até já lhe chamávamos ‘a melga de serviço’ ou, com uma pontinha de inocente jacobinismo, ‘a melga nossa de cada noite’. Acendíamos a luz, e logo ela se sumia como por encanto. Oh, ninguém faz ideia de como podem ser ardilosas as melgas de Grijó. Por fim, lá se descuidava e pousava à vista: descarregávamos então sobre ela, com sanha não menor do que aquela com que Santiago se atirava aos sarracenos, um golpe de toalha, que a deixava esborrachada na parede, numa amálgama de patas e sangue — o nosso sangue! Mas enquanto a não matássemos, não era possível pregar olho. Às vezes isso demorava eternidades. Foram muitas noites arruinadas a crédito das melgas. Diabos as levem!
Como vê o Leitor, a zoologia não me foi propícia nestas férias, e fez com que terminasse este escrito, que quisera ameno, a praguejar. A perfeição não existe.
E pronto. É tudo sobre as férias de 1989.
May be a close-up
Domingos da Mota, Armando Dias Sarmento and 38 others
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  • Francisco Pires

    Quanto às melgas, tem razão Dr. Cabral! A da foto parece um avião Concorde!

    Deixo-lhe as três primeiras estrofes dum poema meu, que tem por título “Que Saudade me vem… da Minha Infância:…

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