CRISTÓVÃO DE AGUIAR POR SANTOS NARCISO

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Em jeito de humilde homenagem ao escritor Cristovão de Aguiar, no dia da sua morte.
O que escrevi em “Leituras do Atlântico” no dia 18 de Maio de 2015
Cristóvão de Aguiar
O “ouro” dos anos no brilho da escrita
Cinquenta é número de ouro quando se fala de anos. E foi este “ouro” que cobriu de gala, em dia de nascimento de Antero, a Casa-Museu Guerra Junqueiro, no Porto, numa iniciativa da Casa dos Açores do Norte e do Departamento de Estudos Românticos da Universidade do Minho, em colaboração com a Direcção do Curso de Línguas e Literaturas Europeias do Instituto de Letras e Ciências Humanas. Foi a homenagem nacional a Cristóvão de Aguiar, Açoriano, pico-pedrense, já agraciado pela República com a Ordem do Infante D. Henrique e, em 2012, pelos Açores, com a Insígnia Autonómica de Reconhecimento.
Isabel Fernandes, Editora do Jornal de Letras que dedica, na sua edição de 15 de Abril de 2015, cinco pesadas páginas ao escritor homenageado, escreve, com todas as letras que “Cristóvão de Aguiar é, sem sombra de dúvida, o maior escritor da literatura açoriana, e um nome de referência no panorama literário português”. Se o adjectivo “maior” pode ser subjectivo, a mim, deu-me muito mais prazer que a autora do texto o tenha enquadrado dentro da “Literatura açoriana”. Sim, porque esta tem sido uma polémica de muitos anos e com muitos intervenientes e Cristóvão de Aguiar, ele mesmo, posicionou-se contra essa ideia de “Literatura Açoriana”. E será curioso notar aqui que, o assunto foi abordado pelo Secretário regional da Educação do Governo dos Açores, na intervenção proferida no Porto, a encerrar a sessão de homenagem ao escritor que diz que “não escrevo, faço croché com as palavras”. Disse Avelino Meneses: “Com clarividência e com razoabilidade, Cristóvão de Aguiar duvida da existência de uma literatura açoriana, preferindo falar de uma escrita de expressão insular com raízes continentais e com extensão atlântica, constituindo tudo isto o universo dúbio da lusofonia”. O Secretário Regional que representava o Presidente do Governo açoriano na cerimónia, acrescentou ainda que a identidade açoriana é, pois, “muito complexa”, chegando, por vezes, a ser a “negação de uma identidade”, daí que “a mundividência” constitua “uma importante faceta da Açorianidade, que comunga e acentua o caráter universalista da cultura portuguesa”.
Cristóvão de Aguiar é assim mesmo, irreverente q. b. nos seus 75 anos, mas com uma característica que é traço comum de toda a sua obra, aqui lapidarmente definida por Avelino Meneses: “a defesa dos oprimidos” e, também, a “omnipresença de temas açorianos”, o que, por vezes, foi expresso “numa linguagem de sabor dialectal e regionalista”.
No decorrer da sessão de homenagem foram lançados os dois primeiros volumes dos treze que vão constituir a edição das obras completas do Autor, com chancela das Edições Afrontamento e patrocínio do Governo Regional dos Açores. O I Volume é inteiramente dedicado a “Raiz Comovida”, na trilogia constituída por “A Semente e a Seiva”, “Vindima de Fogo” e “O Fruto e o Sonho”, enquanto que o II tomo “Amor Ilhéu” inclui prosa poética, sonetos e outros poemas.
Reler, como agora estou a fazer, os três livros do volume “Raiz Comovida” que recebi, com mais o outro volume, em pacote registado, com inesquecível dedicatória do Autor, é regressar a muitos anos passados, sentindo o renascer de termos e gestos dum quotidiano viver ilhéu que dorme dentro de mim e que acorda na magia do “quartinho do relógio cujo coração do pêndulo vai moendo o tempo na mó desenfreada do seu tiquetaque”.
Naturalmente que a apresentação desta obra não poderia ficar só pela cidade invicta. Foi pelo próprio Cristóvão de Aguiar que soube que está agendado o seu lançamento na Biblioteca Pública de Ponta Delgada, no dia 15 de Junho pelas 18 horas, com apresentação pelo Prof. Carlos Riley, da Universidade dos Açores. Talvez pelas limitações físicas que me amarram a casa, talvez por não ler o suficiente da informação regional, ou talvez por não serem mesmo divulgadas, pouca referência tenho visto por cá a este acontecimento. Mas estou certo que a proximidade temporal, (ainda falta quase um mês), fará com que seja devidamente publicitado, não por Cristóvão de Aguiar, mas pela cultura e literatura que eu só entendo quando liberta de teias e interesses.
Para Cristóvão de Aguiar – e sirvo-me de algumas das palavras da inesquecível intervenção que fez no Porto e que tive a honra de ler e guardar – “meio século de vida literária perfaz a soma calada de mais de um carro repleto de anos, para utilizar a genuína linguagem beirã de Aquilino Ribeiro, um dos magos do meu círculo de afeições electivas do reino da Literatura. Dada esta veteranice aonde acabo de poisar sem sequer ter dado fé do tempo da viagem, assiste-me já o direito de quebrar o protocolo que seria mister cumprir nestas ocasiões solenes ou solenizadas”.
E com muito carinho, mas ao mesmo tempo com a mordaz ironia de quem conhece que “é admirado por aqueles que sabem ler nas entrelinhas”, recorda a saga do seu primeiro livro de poemas, em tempos de comissão de serviço militar na Guiné “ainda sem Bissau”…
“A quem partia para a guerra colonial, ambígua, confusa e medonha, exigia-se cuidada preparação em terra. E eu, numa arrojada presunção de poeta principiante, pensei em estrumar o futuro com um livrinho de versos… Estrumei-o no sentido literal do verbo… Tal arrojo só se poderá consentir e perdoar tomando em conta a insensatez, em coligação com o vigor de uma serôdia adolescência, para já não referir a conjuntura bélica que já se havia transfigurado em tragédia engolida, mesmo para os que estavam longe da idade militar…
Houve quem me aconselhasse, pura e simplesmente, a que procedesse a uma interrupção voluntária da gravidez lírica. Não haveria perigo de septicemia, nem de sentar-me no banco dos réus – o embrião pouco mais seria do que uma sombra sem qualquer estatuto que pudesse vir a oferecer ténues sinais de vida intra-uterina…
Já com alguma consciência muito frágil dos limites, baptizei-o e botei-lhe o nome cristão de Mãos Vazias, livro de versos desafinados num concerto em dó maior e em sol menor de mágoa, clave de pé-coxinho, esvaziado da poesia mais elementar. Porém, não renego esse filho, como Pedro a Cristo antes do terceiro cantar do galo, mas confesso que me sinto com remorsos sempre que recordo esse rebento prematuro e poeticamente malformado… Não o renego, não. Se o parto se não tivesse consumado, não estaríamos, aqui e agora, a festejar os cinquenta anos de vida literária de um escritor que persiste no seu doloroso afã de alisar e limar, metamorfosear e mondar palavras nas frases que rabisca, transmudando-as depois em textos e estes em livros e estes em múmias de papel impresso, para serem, na primeira oportunidade, remodelados e refundidos, num frenesi diabólico…”
E sobre o porquê da escrita: “A presidir a este labor de Sísifo, um único desígnio e uma só ambição – que nasça uma gota de beleza que, com outras, provenientes de outras nascentes, amamentem um ribeirinho que se transvaze nas águas necessárias que regue tanta aridez mundializada… Respira-se muito mal, é certo, mas ainda resta espaço para traficar a poluição por quotas… Basta para isso licitar e ir subindo a parada… Tudo compra o dinheiro. Não há nada que se não compre, nada há que se não venda. E, como diz o Poeta Manuel Alegre, a vida também se compra, a vida também se vende, é simples mercadoria, nessa praça onde tu passas, tão sem preço como o preço, que o vento teria amor, se o vento tivesse preço…”
Justificando o título deste meu humilde trabalho, considero que o “ouro” destes 50 anos no brilho da escrita que não morrerá pode encerrar-se neste abraço de “conterrâneo” que lê, sente e interioriza a beleza que cabe na alma das palavras de Cristóvão de Aguiar, com quem nunca estive, pessoalmente, mas é como se sempre estivesse!
Santos Narciso
Chrys Chrystello
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