Views: 0
O lançamento do livro “O Coração da Memória”
O CORAÇÃO DA MEMÓRIA
NA FESTA DA AMIZADE
Vou procurar ser breve, como convém neste momento solene. As palavras já pouco dizem ou tornam-se inábeis para retroverter ou traduzir os sentimentos que se me guerreiam no íntimo. O meu Amigo José Manuel Medeiros Ferreira não tinha o direito de nos dizer adeus tão cedo – faz hoje precisamente três meses que foi restituído à terra. Nem ele nem o Viriato, que ainda teve mais pressa e lá se foi há mais de três anos… Fui um privilegiado em ter encontrado e convivido muito de perto com o M. Ferreira. Com ele e com o Viriato, formávamos o trio da Biblioteca. Aí passámos muitas horas feriadas, sentados no estrado ao fundo, o do piano, ouvindo o Viriato recitando poesia ou lendo páginas de Eça de Queirós…
No estreito convívio diário que mantivemos até ao último ano do Curso Complementar de Letras, tornei-me mais rico e com ele fui amadurecendo intelectualmente ao longo dos lentos, muito lentos anos dos estudos e da adolescência. Escutava-o nas suas sérias e simultaneamente chistosas prelecções cuja temática abarcava os mais desvairados assuntos – da política à História, do futebol à Filosofia, do cinema ao humor. Humor que lhe brotava natural como uma fonte que se abre em rocha bíblica tocada por uma varinha de condão. Cultivava-o, burilando-o, com a um diamante bruto, e aprimorava-o com a seriedade com que esta superior capacidade do espírito humano merece ser tratada.
Ele sabia muito bem que rir é uma coisa séria, para utilizar uma expressão que serve de título a um livro cujo Autor agora me escapa… E assim se desanuviaram muitas das sombras teimosas que me pairavam sobre o motor da mente… À beira do Medeiros Ferreira, não havia, nem podia haver lugar para sombrias tristezas, muito menos lamechas… Fomos colegas e amigos íntimos entre dois pólos da vida: 1956 e 2014, isto é, entre o ano primeiro da sua entrada no então Liceu Nacional de Ponta Delgada, vindo desta Vila, onde concluiu o segundo ano do Externato, e o ano último da sua vida, ocorrido em 18 de Março passado.
Apesar da sua intrínseca alegria e boa disposição, também era capaz de uma lágrima comovida. Vou contar-vos um episódio passado em 2 de Maio de 1991. Tínhamos chegado dias antes, a convite do Conselho Directivo da já Escola Secundária de Antero de Quental. Vínhamos proferir uma conferência sobre o tema que nos fora antecipadamente sugerido: “A Aprendizagem Insular da Cultura”, integrada no 1.º Centenário da morte de Antero de Quental. O evento cultural realizou-se no Salão Nobre da Biblioteca, em 29 de Abril, e repetiu-se no dia seguinte. Viéramos ambos e mais três escritores da Ilha, antigos alunos e há muito fixados no Continente, apresentar contas do destino que havíamos dado ao que aprendêramos durante os anos que vivêramos na Ilha e no Liceu. Lembro-me de que a dada altura da sua comunicação o Medeiros Ferreira, em homenagem ao senhor Augusto Moura, professor de ginástica, citou-lhe uma frase lapidar: «Passa a bola, Ferreira; olha que a bola corre mais depressa do que o homem…» E a bola com que a vida e o tempo se entretêm a jogar ou a jogar-nos também cavalga muito mais célere do aquele que a vai vivendo.
Fiz sem querer um desvio no caminho. Estava contando que o meu Amigo Medeiros Ferreira, apesar de galhofar e de rir e de ironizar e de fazer os outros rir, era também capaz de uma lágrima emocionada. Aconteceu no dia 2 de Maio, no dia seguinte ao do funeral do Doutor Ruy Galvão de Carvalho, professor de História e Filosofia. Durante os dois dias das conferências, ocorreu o reencontro dos três amigos do peito: o Viriato, o Ferreira e eu. Não nos encontrávamos assim de uma assentada havia cerca de trinta anos. Por momentos senti ou quis sentir ou fingi que senti que, afinal, poderia a vida oferecer-nos um retorno… E viemos os três à Vila, a esta mesma onde agora nos encontramos e que deveria, em devido tempo, ter subido à categoria de cidade. Viemos, aqui, em romagem afectiva, que o Ferreira passara aqui parte da sua infância e adolescência, e desejava reencontrar-se nas ruas que calcorreara e nos sítios onde convivia com os seus colegas com quem jogava ao futebol… Fomos percorrer os seus lugares sagrados, cujas raízes aprumadas lhe ficaram fincadas na recordação, palavra que significa chamar ao coração. Até nos foi mostrar o largo portão de madeira, a tinta verde já descascada, contra o qual chutava a bola para treinar o pé e o remate antes de se ir juntar aos companheiros das renhidas partidas de futebol. Não sei se ele se encontrou, mas é de crer que não! Não lhe perguntei. Há perguntas que se não fazem, sobretudo quando se pressente ou se vê um rosto perturbado pela emoção e se sente nele uma saudade contida. Dessa vez, não tivemos aldância de subir até ao alto da Senhora da Paz. Cansaço de tantas emoções? É natural… À socapa, acenei-lhe eu cá de baixo, e Ela sorriu-me do seu trono de altura. Senti que nos tinha perdoado o pecadilho de não termos ido lá a cima cumprimentá-la…
À tarde, na derradeira digressão ao longo da Avenida Marginal da Cidade, antes da despedida e do destroçar, desfez-se o que ainda sobejava das muitas ilusões que nos haviam habitado nesse já longínqua tarde na Vila… Um chuvisco de tristeza transformado em lágrimas que teimaram em aflorar, decerto para lavar uma mágoa que não tinha nome. Fiquei, ficámos fragilizados, um nevoeiro ensopado toldando os olhos. Afinal, pensei eu, não há retornos, tudo o que passa se torna irremediável!
Terá sido a última vez que o trio da Biblioteca se reuniu. Encontrávamo-nos, sim, mas em separado. Ora com um, ora com o outro. Não há retornos, ouço-me de novo. E recolho-me. O futuro já não me existe…
Blogue: A Destreza das Dúvidas
aguiarconraria.blogspot.pt
Publicada por Luís Aguiar-Conraria à(s) 00:13:00
É por isso que, para além do culto que a obra de Eça legitimamente merece, por mérito próprio e grandeza genuína, se deve reconhecer, para sermos justos, que muita da admiração totalitária que Eça desencadeia nasce porventura duma espécie de preguiça e lentidão em entender, ainda nos nossos dias, a linguagem diferente daqueles que lhe sucederam. O que não parece vir a propósito, embora venha. Como um dia veremos. — Texto de Lídia Jorge que saiu no exame de Português.
Pelo que percebo da notícia, os especialistas não concordam sobre se “Como um dia veremos” é um “acto ilocutório assertivo” ou um “acto ilocutório compromissivo”. Foda-se… Ainda dizem que matemática é difícil…
PS Onde é que a Lídia Jorge tinha a cabeça para rematar este parágrafo com um “acto ilocutório”?
PS2 (CA)– Não se deve dizer nem escrever:…para além; além basta!
Os grandes escritores também escrevem e dizem asneiras. O pior é que o erro saiu num ponto de exame de Português… Registe-se!
Publicada por Luís Aguiar-Conraria à(s) 22:13:00 3 comentários Hiperligações para esta mensagem