COVID, O MEDO E AS OUTRAS DOENÇAS MORTAIS ESQUECIDAS

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Escrito por Pedro Girao

“NÃO TENHAM MEDO!

À esquerda, o aspecto normal do estômago; à direita, um cancro. Fotografei este caso há poucos dias. Desde que cessou a proibição de fazer exames “não-urgentes” (sim, eu e muitos milhares de médicos por essa Europa fora estivemos proibidos de trabalhar), desde a retoma este foi o terceiro caso que encontrei em 3 semanas – o que é muito mais do que o normal. Todos estes casos tinham aspectos comuns: os doentes tinham queixas ou sintomas desde Dezembro/Janeiro, recorreram ao Centro de Saúde em Janeiro/Fevereiro, e os seus exames, que seriam em Março, foram adiados até agora. Num dos casos, a doente veio fazê-lo antes mesmo de ter autorização do Centro de Saúde, porque ainda não tinha sido vista por um médico (desde Fevereiro) e achou que não podia esperar mais. Sublinho, para o sistema de saúde isto são casos “não-urgentes” (porque a urgência está escondida). São casos destes que agora estão de novo adiados em Lisboa. São estas algumas das muitas vítimas colaterais do Covid, pessoas a quem a televisão e os jornais não atribuem importância porque não têm a infecção que vende. Nestes meses, todas as 300 mortes por dia serão iguais, mas as 12 mortes por dia do Covid serão menos iguais que as outras 288.

Não tenham medo, portanto. Vão ao médico, vão às consultas, vão aos centros de saúde, vão aos hospitais, vão às urgências. Não fiquem em casa. O bastonário da Ordem dos Médicos fez há dias um apelo nesse sentido: os doentes não devem ter medo. Concordo inteiramente. Mas ele não disse outra coisa: esse é apenas um aspecto do problema. É que o medo não é só dos doentes. O outro medo que alimenta este quadro é o medo dos próprios médicos.

Sim, muitos médicos têm medo. É natural e compreensível. Muitos dos médicos que estiveram na “primeira linha” não tinham experiência nem vocação para enfrentar um risco desta natureza, tal como os médicos dos Centros de Saúde, por exemplo. Agora, mesmo após a retoma, eles continuam a manter os doentes à distância, privilegiando as tele-consultas, o tele-diagnóstico, o tele-rastreio, o tele-medo. Tudo isso são ordens que receberam por escrito do Ministério da Saúde, por Despacho de 7 de Maio. E, embora cada Centro de Saúde possa ter uma certa autonomia, sendo por isso difícil fazer generalizações, muitos deles preparam-se para ver o menor número de doentes possível, pelo menos até 31 de Agosto. Há barreiras físicas para os doentes não irem aos Centros de Saúde. Há regras, há enfermeiros à porta; os médicos estão escondidos nos gabinetes. O doente transformou-se no inimigo que os pode infectar. O que possa suceder aos doentes crónicos que estavam habituados a um acompanhamento presencial, o que possa acontecer a estes “não-urgentes” que afinal são urgentes escondidos, isso não interessa. O que interessa é salvar a própria pele. A Medicina, como sabemos, não é bem isto.

Mas tal não sucede só ao nível dos cuidados primários: também nos hospitais se verifica este medo. Nos últimos 3 meses, criaram-se imensos protocolos, todos muito diferentes uns dos outros (cada Hospital, cada Serviço fez o seu), e todos diferentes porque não há certezas científicas sobre coisa alguma; a única certeza é o medo. A principal preocupação dos protocolos é, regra geral, a segurança dos profissionais de saúde; a segunda preocupação é impedir a propagação do vírus (o que é paradoxal, porque muitos doentes têm testes negativos); e a última preocupação é o interesse do doente. Há protocolos que aumentam objectivamente o risco do doente (falo da anestesia, que é a minha área – e eu recuso-me a cumpri-los.) Evidentemente, os dias passam e o medo diminui. Muitos profissionais já perceberam que o risco é mínimo. E, também a eles, digo: não tenham medo!

A todos, doentes, médicos, outros profissionais de saúde, há que insistir nisto até à exaustão: não tenham medo. Os números actuais são baixíssimos; a comparação com as outras doenças que matam diariamente raramente é feita, e é avassaladora. Tomem todos os cuidados, sensatos e responsáveis, cumprem as regras adaptadas às vossas necessidades mas, por favor, vivam, cuidem-se, tratem-se a vós mesmos e tratem os outros. Não tenham medo!”

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