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COCAÍNA NO SUPERMERCADO. 5.7.2014, CRÓNICA 138
As bananas do Lidl embaladas com cocaína, provocaram frémito e genica à Dona Firmina:
“Sinto-me cheia de energia, cacete! Fui ao Lidl, trouxe bananas porque estavam todos a comprá-las e comi uma no caminho. Depois fui à peixaria e ao sapateiro. Vou fazer o almoço, aproveito e faço o jantar, o almoço de amanhã e se calhar deixo preparada a marinada para o fim de semana. Enquanto as batatas cozem aproveito e tricoto uma camisolinha para o neto. E tenho tanta coisa por arrumar, hoje vai tudo a eito. Lavar os tetos, arredar móveis e bater tapetes. Está um belo dia para atividades do lar. Vou comer mais bananas, são mesmo boas.”
Enquanto pensava nas bananas do Lidl com cocaína, o amigo José António Salcedo escrevia:
“Pelos montes do Gerês ecoam as músicas pimba emanadas das capelas com instalações sonoras potentes, numa manifestação inadmissível de imbecilidade coletiva, embora as gentes locais possam imaginar que é abençoada pelos deuses. Como gosto de referir, “A delusion is a delusion.” Imagino que o volume do som seja ajustado tendo em conta a elevada distância que as superstições locais consideram existir entre cada capela e o ‘céu’ onde pretenderão ver os deuses a dançar. Por mim, imagino-o com rolhas nos ouvidos e faço planos para o regresso à Noruega, onde o silêncio e a limpeza em Natureza são valores essenciais da sociedade, contrariamente ao Minho, onde nem uma coisa nem outra são apreciadas e, muito menos, mantidas.”
Cito Zack Magiezi: “Causa mortis: traumatismo craniano. Fruto de mergulho profundo em pessoas rasas.” Seria a mensagem lapidar para o povo que, apesar da educação massificada, continua generalizadamente inculto e abúlico como Eça o definia:
Acabava de entrar 1872. O ano novo interrogava o ano velho.
– Fale-me agora do povo; pedia o ano novo. É um boi que se julga um animal muito livre porque não o montam na anca e o desgraçado não se lembra da canga; respondeu o ano velho.
– Mas esse povo nunca se revolta? Insistia o ano novo espantado.
– O povo tem-se revoltado por conta alheia. Mas por conta própria, nunca; respondia o velho.
– Em resumo, qual é a sua opinião sobre Portugal?
– Um país normalmente corrompido, em que os que sofrem não se indignam por sofrer.
Diálogo de Eça sobre Portugal:
“O povo paga e reza. Paga para ter ministros que não governam, deputados que não legislam, e padres que rezam contra ele. Pagam tudo, pagam para tudo. E como recompensa dão-lhe uma farsa.” Era 1872 a falar do bom povo português, “raça abjeta” de que falava esse eterno frustrado, Oliveira Martins, hoje poderia ter escrito este meu texto:
“Um povo cretinizado, obtuso, subjugado, sem lamúrias, a não ser à mesa do café, enquanto vê o futebol que a crise não permite ter TV Sport em casa. Sem rebeldia, tão pouco de raiva, nem que seja surda. Um povo que se deixa levar, indiferente, por políticos sem escrúpulos, mentirosos compulsivos e múmias silentes em estado adiantado de decomposição mental, rodeadas de pompa, circunstância e servis conselheiros pagos a preço de ouro para bajularem. A desobediência civil deitaria abaixo os castelos de cartas nas nuvens. Os pobres (de espírito) alinham com os que parecem ter o poder e os legitimam. Sempre comeram e calaram, gratos pelas migalhas que os senhores jogavam pelas seteiras quando a turba suplicava para enganar a fome. Inventaram a padeira de Aljubarrota, Maria da Fonte, Velha da Ladeira (guerras liberais, Açores) para escamotear o facto de se tratar de populaça perenemente amodorrada e crassa, capaz de aceitar todos os sacrifícios. Atente-se na lenda das tripas na defesa de Portucale. Povo de chapéu na mão, espinha dobrada a beijar o chão dos senhores (que sempre o espoliaram), a recuarem, gratos e venerandos pelas migalhas bendizendo a generosidade. Eu vivi nesse “sítio” de que falava Eça, na “piolheira” a que el-rei D. Carlos se referia (país de bananas governado por sacanas), governado por gente como o douto Conde de Abranhos: “Eu, que sou o governo, fraco, mas hábil, dou aparentemente a soberania ao povo. Mas como a falta de educação o mantém na imbecilidade e o adormecimento da consciência o amolece na indiferença, faço-o exercer a soberania em meu proveito.”
Ontem como hoje, o verdadeiro esplendor de Portugal. É por estas e outras que eu e tu, caro Salcedo, seremos sempre parte intrínseca da elite pensante e culta. Se os ateus – como eu – têm dores nas cruzes, não devemos dizer “a culpa é do tempo.” O tempo está bom, nós é que estamos mal. Não nos devemos autodiagnosticar com baixa autoestima quando rodeados por idiotas. É como a alegoria de que toda a gente fala de amor, mas poucos sabem amar, é o que falta hoje, a capacidade de amar, de acreditar (em nós, dos outros sabem eles). Sabes, Zé António, isto das Festas e fé, é complicado e mesmo sem música pimba, indissociável das mesmas, é um tormento.
15.9.1. RECORDAR TORGA, CRÓNICA 138, 5.7.2014
“Coimbra, 5 julho 1949 – Dizer tudo. Contar tudo. Passar para o papel a verdade inteira, sem deixar dentro da alma o mais pequeno segredo. No artista, até as contas do alfaiate interessam.» Estes críticos esquecem-se de que os escritores são homens. Julgam que somos máquinas de varrer as imundícies dos outros e as nossas. Dizer tudo, dizemo-lo nós, duma maneira ou doutra. Mas dizemo-lo como queremos, numa confissão que não tem direção, nem regras. Um escritor como Eça de Queirós, o mais pudico dos nossos artistas – tão pudico que até as inofensivas intimidades da sua vida cobria dum véu literário –, não teria dito tudo? Ficaria dele algum segredo escondido? Alguém precisa ainda de saber mais?!”
Diário V, Miguel Torga