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ROSELY FORGANES PARTILHA
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a CRÓNICA DO QUOTIDIANO INÚTIL EM RECENSÃO POR MELO BENTO
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Pode um livro mudar definitivamente a vida de um homem?
Pergunta insidiosa, daquelas que só fazemos depois de ter encontrado resposta para elas, nunca eu poderia tê-la formulado na manhã baça em que Veerle me deixou no aeroporto de Bruxelas. Nesse momento, tudo parecia simples: eu partia para os Açores para investigar as relações históricas entre a Flandres e o arquipélago. Dois meses eram apenas um risco de asa sobre três ou quatro das ilhas a meio do Atlântico, tempo capaz de iluminar o rasto desses flamengos que um dia trocaram os seus lares pela incerteza de territórios ainda a inventar. Quem eram eles? Que motivos os teriam levado a essa espécie de exílio entre a Europa e a América?
A bordo, uma dezena ou dezena e meia de adolescentes quebrava a sisudez dos passageiros, quase todos com o ar compenetrado daqueles funcionários que a Europa unida envia para Bruxelas em busca de salvação para este mundo e para o outro. Acabado o tempo imposto pelas normas de segurança, alguns dos adolescentes desapertaram os cintos e começaram a circular pelos corredores, em visita de tagarelice aos que tinham decidido continuar sentados. Como se, de repente, um inesperado grupo de pássaros escapados ao bando sobrevoasse «O cambista e a sua mulher», de Massys. Mais tarde, um deles dir-me-ia, num inglês fluente, que eram alunos açorianos em regresso de uma visita de estudo ao Parlamento Europeu. Ainda tentei indagar o que sabia ele desses remotos antepassados de cujo chão estivera tão perto, mas já ele voava para outro assento, onde uma jovem de cabelo ruivo e olhos claros o recebeu com um sorriso desfraldado.
Pude por isso debruçar-me sobre as páginas de Gros temps sur l’archipel, a tradução do romance português que eu comprara anos antes e onde, afinal, tudo tinha começado. O nome de Vitorino Nemésio era-me desconhecido, mas uma leitura à vol d’oiseau do prefácio fizera-me comprar o livro. E sempre que o retomo regresso à página 159, aquela em que se deu o encontro decisivo: «Quant aux nouvelles de Belgique, j’ai été heureuse d’apprendre par toi, cher cousin, qu’on a donc fini par trouver la pierre tombale de ce pauvre Francisco Brum dans le cimetière d’Oogenbon (je ne sais si j´écris ce nom correctement). Même si la dépense est trop élevée pour qu’on puisse faire transférer ses cendres à Faial, c’est du moins une consolation de savoir où eles reposent.» Quem era este Francisco Brum que, perdido o antigo nome Bruyn, regressara à terra dos antepassados para morrer nela e mais uma vez se perder da família e dos amigos? Que mistério o seu, que me fazia repetir-lhe a viagem, mas em sentido inverso?
Não sei quantas vezes se multiplicaram já os dois meses iniciais nos Açores. Continuo a investigar, mas essa é apenas a forma decente de adiar um regresso impossível. Leio agora Mau Tempo no Canal na língua natural do romance, nas suas páginas percorro o mar, o tempo e a destas ilhas, ouço a voz da sua gente. Troquei Veerle por Margarida e os canais de Bruges pelo canal de S. Jorge. E se algum dia começarem a tratar-me por Brum, saberei, então, que perdi uma pátria para ganhar outra.
(Publicado em Azorean Spirit. Sata Magazine, n.º 55, abril-junho 2013)
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BALIBÓ – THE MOVIE
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Junho 2012
Quando passeio pela ilha e a vejo em toda a sua beleza pura, não posso deixar de me admirar por ainda me causar espanto, ao fim de tanto tempo. Penso que já foi tão fotografada que corre o risco de se estragar, como uma mulher bonita.
Fomos para as bandas do Faial da Terra. Ali, entre o Mar e a encosta escarpada, vislumbrei o equilíbrio perfeito entre a Terra e o Mar. Vidas paradas… Suspensas…Terra fecunda que se oferece ao Homem numa eterna dádiva. Homens que vivem tão perto do Mar! Tão perto do Céu!
Da Terra ao mar é um passo que condensa tudo: sonho e infinito; busca e incerteza.
Uma luz mística surge ali, por detrás da escarpa, a criar ilusões e a envolver Terra e Mar em raios de fantasia.
A Terra é a âncora, o porto de abrigo, o ancoradouro de sonhos. Dela vimos. A ela regressamos.
O mar é a passagem.
Então pensei que o que a Natureza tem de mais belo é a sua inconsciência. É ser fantástica, mágica e misteriosa sem se aperceber. É maravilhar-nos com a sua beleza, apenas porque está ali, para regalo dos olhos.
Seguindo o curso da ribeira, subimos pela mata até à cascata do Salto do Prego. O caminho pedregoso não é fácil, principalmente porque vamos após uma noite de forte chuvada. A lama não facilita a vida aos caminheiros, mas lá vamos, sem querer dar o braço a torcer ao cansaço.
Fecho os olhos e inspiro aquela mistura perfeita de frescura e de vida que brota da mata de criptomérias, conteiras e incenseiros. De repente lembro-me de que subi aqui a primeira vez há 17 anos, com a família toda, mais o Onésimo e a Leonor, que fazem parte da família. Trazia o Afonso na barriga.
A partir de certa altura, em cada curva do caminho, julgamos já estar muito próximos, porque o barulho da cascata vai-se intensificando, brincando connosco ao esconde-esconde pelo meio das árvores. Subitamente, na pequena descida enlameada, olhamos à nossa esquerda e lá está ela, garbosa! Cascata feita de nuvens, rasgando a rocha num brotar constante. Num gesto abusivo de invasão, a água a medir forças com a Terra. A pureza da água no mito da origem brota do basalto negro e a ele regressa num ciclo de eterno retorno tão anterior a nós e que irá perdurar tão depois de nós…
É frágil a vida. Mas esta água e esta rocha não.
O Céu, que mal se vislumbra nesta luxúria de verdes, mantém-se imperturbável e sereno, pelo tanto que já viu.
Água abençoada, vinda do alto! Imagem duplicada de beleza, emoldurada pela silhueta das árvores que velam em silêncio…
Maria João Ruivo