ANTÓNIO BULCÃO, O ENFERMEIRO TIAGO

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Tiago: YOU have a problem…
Estava minha mãe grávida de mim e rebentou um vulcão. Bem sei, parece coisa de filme, mas foi exactamente assim. Eu a formar-me e os Capelinhos a rebentar.
Durante meses aguentei sismos seguidos, protegido com colete uterino, dizem que mais de dois mil só num dia. E não consigo deixar de pensar que a tal tremedeira se deverá este feitio irrequieto, esta inquietação constante, que não me dá um segundo de descanso.
Nos primeiros anos da minha vida muitos foram os passeios de carro ao vulcão, vendo bombas de pedra espalhadas pela areia, casas só com o tecto de fora, o farol sem luz, também ele afogado. E ganhei medo àquela força tremenda.
Em 1973, já grandinho, vinha do liceu e começou tudo a tremer. Corri para casa e subi pelas escadas exteriores das traseiras. Não via a Espalamaca. Nem via o Pico. Um nuvem de terra tudo cobria, e eu refugiei-me na casa que meu avô dizia que, quando caísse, a cidade já estaria toda no chão. Casa grande, que levou todos os familiares cujos lares tinham ficado rachados, e os rapazes a dormir em colchões espalhados pelos sobrados dos quartos, sentindo os mesmos a ondular de vez em quando, quase duvidando das sólidas certezas do avô.
Depois veio 1980 aqui, 1998 de novo no Faial, estes muito grandes e mortais, para além das centenas espalhadas pelos outros anos, mas que só davam para a pergunta que ainda hoje dura: sentiste?
Tenho muito medo de sismos. Porque o frio, sinto-o, mas combato-o com cobertores. O calor também o sinto, e lá vão ventoinhas para cima do lombo. Vento fecha-se as portadas. Raios e trovões já são mais perigosos, mas a gente conta a distância e reza para que se afaste o ribombar. Foram poucos os estalares que vieram logo a seguir ao clarão, na minha já longa vida. Mas tremores de terra a gente não vê, nem pressente. Só ouve, aquele arroto terrível da terra a mover-se, paredes a oscilar, coisas a cair e rezas para que pare depressa. Mas, enquanto dura, que impotência aflita…
Nunca imaginei vir a sentir medo semelhante por causa de um vírus. Novamente uma coisa que não vejo a tolher-me os movimentos, a atrapalhar-me a liberdade. Claro que a máscara. E as mãos lavadas. E o gel desinfectante. E a distância. E o ficar em casa, sem ajuntamentos. Mas há sempre a dúvida. Onde pus a mão há bocado? Levei-a ao nariz por dentro da máscara para acabar com uma das tais comichões que a todos ataca nas horas mais impróprias?
Medo nos olhos dos meus alunos no ensino à distância, depois nas aulas dos rostos azuis presos com elásticos brancos. Medo, porque a gente não vê o bicho e ele pode estar em qualquer lado.
Nunca perdoarei a quem faz política sobre este medo. Sempre a criticar os que trabalham todos os dias para conter uma praga para a qual ninguém estava preparado, tentando dar o seu melhor. Sempre a instigar ao ódio e à denúncia.
Prove-me o enfermeiro que, com ele a mandar, não teria havido segunda vaga, nem terceira, nem sei lá quantas mais virão. Prove-me que, se tivesse continuado a ser ele a vir televisivamente a todas as casas, não teriam nascido novas estirpes. Prove-me que, com ele director ou secretário regional, já estaria tudo vacinado. Prove-me que, com um pulôver novo todos os dias, o corona fugiria de mim.
Se não puder provar nada disto, que se cale. Depois de ter jurado que não estava nos seus planos seguir uma carreira política, segue-a da pior maneira. Atribuindo culpas. Por falta de comunicação. Por falta de planeamento. Pela inteligência do bicho.
Meu avô andou a acarretar gente do Capelo para fora do inferno de lava, nas suas camionetas, senhor enfermeiro. Ninguém esperava um vulcão, como ninguém esperava esta doença. Mas sei bem o que faria meu avô, se lhe aparecesse um rapazinho de barba aparada a dizer-lhe que, em vez de seis viagens por dia, deveria ter feito dez. Talvez se o senhor enfermeiro tivesse nascido por aqui desse mais valor aos nossos medos e não brincasse com eles, com analogias de Apolo 13. Mas nem quero imaginá-lo nas páginas dos jornais da sua terra em 1755. Porque o Marquês do Pombal tinha ainda menos paciência que meu avô…
António Bulcão
(publicada hoje no Diário Insular)
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