ANTÓNIO BULCÃO CRÓNICA

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Estado de guerra
Sempre tive a mania de imaginar que me estavam a acontecer a mim as coisas más que aconteciam aos outros. Talvez por solidariedade, talvez para me treinar para dores futuras, fechava os olhos e perguntava dentro do peito e da cabeça “e se fosse comigo?”. Daí até ver tudo como se fosse realmente comigo era um curto passo. E sofria.
Lembro-me do pranto da Isabel quando o pai lhe morreu, tinha ela 19 anos. O seu desespero frente ao fim inesperado, que era novo, que não estava doente, que de repente custa muito. Num segundo, já não era o pai dela, mas o meu. Se me chegasse tal notícia do Faial, por um telefone com fio, assim sem mais nem menos. E preparava-me para tal dor, sabendo que um dia seria a minha vez.
Claro que era uma antecipação inútil. Quando morre o nosso pai, mesmo, não há treino anterior que nos valha. Por mais amigo seja aquele a quem o pai faltou, por mais que num abraço tentemos tirar alguma da dor que no outro peito rói, por mais lamento ou sinto muito vertido em orelhas surdas, quando é connosco é outra coisa.
O Lameiras era do grupo de forcados das Caldas e foi pegar para o Algarve. Com os colegas e amigos a pedir-lhe que não fosse. Que os touros no Algarve já foram corridos, sabem a tabuada toda, servem para entreter turistas. Que temos exame de Direito Administrativo, se partes um braço ou coisa assim? Mas ele foi…
E depois veio a notícia. Nem estava na cara do bicho, era primeira ajuda, mas o da cara bateu-lhe no peito já com cornos de cada lado, e o Lameiras caiu para trás como uma tábua, fez um traumatismo craniano e morreu. E nós cheios de grinaldas e uma placa com adeus gravado, a ir para as Caldas, num silêncio que nem o motor do autocarro quebrava. E os pais a receberem-nos em lágrimas. E a gente frente à campa, já sem podermos tirar dúvidas juntos para o exame…
E eu outra vez a ser os pais do Lameiras. Ainda sem filhos, a imaginar-me com eles e a me morrerem. Chorei pais dos outros, filhos dos outros. De nada me ou lhes valeu.
Agora imagino-me a dormir e a minha casa rebentar com um míssil. Eu, que até tenho medo de trovoada, desde o dia em que caiu um raio numa casa ao lado da minha. Mas relâmpagos é como o outro, a gente conta pelos dedos e sabe se estão longe ou perto e confia na lei das probabilidades, para além das rezas a Santa Bárbara. Uma bomba é bem pior, vem da maluqueira de um gajo seguro na carlinga de um avião de guerra, que decide malhar no alvo civil que lhe der na telha, e lá fica o prédio a arder, gente ferida ou morta. Imaginar-me assim parte-me todo.
E imagino-me sem ter para onde fugir, com sirenes a desorientar-me. Ou a ir ao híper no carro e passar-me um tanque por cima. Ou a ver mulheres e crianças em fuga desesperada, sem ter para onde ir.
Quando imagino Angra ou a Praia a serem bombardeadas, ocupadas, metralhadas, as mulheres grávidas a terem os seus bebés debaixo do chão, apetece-me estrangular todos os Putin deste mundo. Fecho os olhos molhados e custa-me muito a adormecer. Vejo clarões, ouço ribombares. Ah, é só a televisão que me esqueci de apagar. Mas um dia poderá ser mais que isso. Nesse dia, não terei de imaginar. Restar-me-á viver com medo ou morrer sem saber por quê.
António Bulcão
(publicada hoje no Diário Insular)
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    Souto Gonçalves

    “Um silêncio que nem o motor do autocarro quebrava.” A melhor frase deste texto.

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