aniversariante de 90 anos

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Estive recentemente no aniversário de um homem que celebrou noventa anos. Nasceu em 1934. Pus-me a pensar no que o mundo mudou. Nessa altura, a população da Terra não chegava aos dois mil milhões de seres humanos. A crescer assim, quantos seremos daqui a noventa anos? O ritmo não é só alucinante, vai obrigar a uma mudança drástica na forma de abordar a realidade. O aniversariante tem um smartphone. Esta palavra não existia sequer há pouco tempo, quando ele já era velhote. Sabe usá-lo com destreza, e eu, que sou muito mais novo, irrito-me com as modernices da minha geringonça de vidrinho às cores que dá som. Em 1934 ainda não tinha acontecido o Holocausto; havia nações que já não existem; havia impérios coloniais, as populações autóctones desses impérios eram consideradas seres inferiores, nas colónias portuguesas lidavam com elas a chicote; a homossexualidade era uma doença; na França ainda se executavam pessoas com o horroroso método da guilhotina, tortura psicológica antes de um tenebroso fim de vida; uma viagem demorava muito tempo, obrigando a uma logística bem estudada; não havia frigoríficos, guardava-se a carne à moda antiga, e o peixe do mar era uma extravagância para as gentes do interior; tomava-se banho num alguidar; não havia aquecimento das casas no inverno… Como o mundo mudou no tempo de vida deste homem bem-disposto que se ri de uma boa piada e conta histórias do passado. Combateu em África, serviu em vários territórios ultramarinos portugueses. Isto é impensável hoje em dia. «O quê? Havia colónias? Dominávamos os povos de África?» Sim, isto aconteceu há pouco tempo. Claro que hoje resolvem-se as questões de uma maneira mais civilizada, como fazem os russos e os israelitas: disparam-se mísseis, e a explosão é tão medonha que mata os maus e os bons, mas ao menos há a certeza de que os maus são eliminados. É tudo mais objetivamente certeiro, até porque as armas modernas permitem isso e muito mais. Prever como será o mundo daqui a noventa anos é impossível, e mesmo se nos deitarmos a adivinhar como será daqui a dez, vamos cair em erros grosseiros. Noventa anos antes do nascimento deste meu querido nonagenário (1844), o mundo não era tão diferente de 1934 como daí para diante. Havia gente de tamancos, casas de pedra nua, fogões de lenha, labuta diária na terra, e casas de banho só nos sonhos. Mas se recuarmos a 1754, noventa anos antes, a diferença em relação a 1844 é muito menor; e quanto mais andarmos para trás, mais estabilidade encontramos. No século II, por exemplo, a tecnologia não mudava nada em 90 anos, nem sequer em 200 ou 300; e se formos para o neolítico, nem em mil anos o estilo de vida se alterava de forma que se notasse, por isso era perfeitamente possível prever como seria a vida dali a noventa anos (algo burlesco nos dias de hoje). No paleolítico, nem em dez mil se alterava. É incrível o rumo que tomou o desenvolvimento tecnológico: hoje há quem tenha medo do que se possa inventar, enquanto que no passado se desejava o que pudesse aliviar a faina dos dias. O moinho de mó movimentada pela força da água, em vez da força dos braços, não foi logo divulgado pelos quatro cantos do mundo: demorou séculos e séculos, assim como a roda de oleiro. Agora inventa-se uma coisa e transcorrida uma semana já está toda a gente à porta do centro comercial para a adquirir, mesmo que não contribua em nada para a felicidade pessoal. Testemunhei uma pessoa que foi a uma loja comparar um iPhone (eu nem sei bem como se escreve esta modernice) e chorou lágrimas bem visíveis quando o empregado lhe disse que não havia! Seria caso de vida ou morte aquele aparelho? Penso que nos ultrapassamos a nós mesmos nesta voragem. Queremos possuir, possuir, possuir, porque a evolução tecnológica nos espicaça a voracidade. Claro que hoje as pessoas vivem mais anos e com saúde física, mas descura-se a saúde mental. Mesmo que se viva mil anos, que valor terá uma vida queixosa? Eu já ouvi pessoas perfeitamente saudáveis dizerem que a morte significa a paz. Será que quererão viver cem anos? Ou cento e vinte, ou cento e cinquenta? Este meu querido nonagenário (caloiro, ainda, porque só fez noventa há dias) sabe, felizmente, aproveitar os anos que a natureza lhe deu. Ri-se, sorri, e nesse dia de aniversário chorou de emoção genuína ao recordar o passado. Depois abraçou a sua esposa e deu-lhe um beijo de amor. Na boca!
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