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Paulo Sande
20 de agosto
AFEGANISTÃO: POR QUEM OS SINOS DOBRAM
I
No filme de John Huston, “O homem que queria ser rei”, passado no século 19 no Kafiristão, uma remota região do Afeganistão, dois diálogos resumem o essencial do que se passou no Afeganistão no século 21:
O primeiro é a apóstrofe de Daniel Dravot (aliás Sean Connery) aos soldados da tribo: “Prestem atenção, seus imprestáveis. Vamos ensinar-lhes a mais nobre das ocupações: a militar. Vão aprender a trucidar os vossos inimigos como homens civilizados! (…) Os bons soldados não pensam – obedecem. Se um homem pensasse duas vezes, morreria pela sua rainha, pelo seu país? Nunca. Nem iria para o campo de batalha. (…)
No segundo, falam Daniel/Danny, Peachy Carnehan (Michael Caine), os dois ingleses aventureiros que pretendem ser reis, e Billy Fish, um indiano que vive no povoado, a propósito da oferta de mulheres e bebida feita pelo chefe da tribo, Ootah, para os recompensar pela ajuda na guerra.
Diz Billy: “Escolham uma das 23 filhas de Ootah”. Danny: – “Filhas dele? Que vagabundo miserável!” Peachy: – “Ora, Danny, países diferentes, costumes diferentes. Ele está a ser hospitaleiro, de acordo com as suas tradições. Billy, diga-lhe que são todas lindas e que não conseguimos decidir-nos”. Responde Ootah pela boca de Billy: “diz que também tem 20 filhos, se preferirem rapazes”. Peachy, furioso, responde: “Dá-me nojo. Diga-lhe!” Danny: “Calma, Peachy. Diferentes países, diferentes costumes”.
Mais tarde, Danny Dravot, já rei e, mais do que isso, considerado um Deus pelas tribos, embriagado pelo delírio da omnipotência, quer casar-se com uma jovem que, assustada, o morde e faz sangrar. Como um Deus não sangra, é morto pela população; Peachy, crucificado, acaba por sobreviver.
Termina assim uma aventura Ocidental no Afeganistão profundo, entre abismos e cumes, ambição e loucura.
O conto original, de Rudyard Kipling, foi escrito no século 19, o filme é de 1975. Em mais de 120 anos, séculos após a aventura romana , o Ocidente nada aprendeu.
II
Já tanto se disse e escreveu sobre a retirada norte-americana do Afeganistão que pouco posso acrescentar; sinto-me incapaz de acrescentar alguma coisa à imensa sabedoria de todos quantos o fizeram (escreveram e disseram).
Limito-me a três rápidas observações:
– A primeira é sobre as mulheres afegãs
Num Ocidente que inventou o politicamente correcto e critica o passado ( o seu passado) por gestas como os descobrimentos ou a colonização;
que propõe formas tantas vezes bizantinas, até ridículas, de corrigir comportamentos ou linguagem suspeita de sexista ou propiciadora de discriminação (pex., referir Deus como “ele”);
que nos obriga a policiar o nosso próprio pensamento, auto-censurando-nos;
que decreta que chamar a alguém velho (gordo, feio, ou se calhar baixo) é proibido;
que defende, e bem, a estrita igualdade entre homens e mulheres e a liberdade para cada um viver como quer, desde que respeite a lei e os princípios e valores fundamentais afirmados universalmente desde pelo menos 1789,
neste Mundo,
as mulheres do Afeganistão terão de voltar a vestir-se de burca, não poderão trabalhar, dependerão para tudo dos homens, seus pais e maridos, seus tutores, seus donos.
Há quem defenda, não percebendo nada, que “países diferentes, diferentes costumes”.
Ainda há quem o defenda, nuns casos por ódio aos Estados Unidos que, verdade seja dita, perderam tanto esta guerra como todos quantos, no Ocidente, nada fizemos para a ajudar a ganhar, indignando-nos, ligando alguma coisa, falando, agindo, o que fosse; ou por razões ideológicas, em nome de um progressismo que há muito não passa de um travesti de qualquer ideal honrado, honesto e sincero.
Não têm vergonha?
As mulheres do Afeganistão, quase 20 milhões, acabam de cair num poço negro, enterradas em vida, privadas de liberdade e personalidade. Preferimos, prefere o Mundo, acreditar nas promessas daqueles que nunca as cumpriram? Ou vai unir-se, rejeitar promessas vãs, agir, fazer pressão, defender a libertação das mulheres?
Vergonha ou dignidade?
– A segunda, sobre a Europa
Concordo com a generalidade de quantos dizem que este é o momento de a União Europeia se afirmar como uma realidade também política, também militar, também de efectiva – real – afirmação dos valores e princípios que defende.
Os norte-americanos estão de saída, abandonam o papel de paladinos do Mundo livre, em nome do qual, aliás, tantos disparates e violência escusada cometeram.
Mas a política e as relações internacionais têm horror ao vazio.
A União tem uma oportunidade única de se assumir, potência económica que (ainda) é, vizinha das geografias em causa, continente berço do Ocidente, gerador da democracia e da liberdade como princípios indeclináveis, da vida como valor sagrado. Tem a oportunidade, tem a obrigação, terá os Estadistas com a visão e coragem necessárias?
– E, por fim, os refugiados
Sim, temos a obrigação de os receber, de não cometer erros antigos, como quando Portugal não protegeu os africanos das antigas colónias que consigo colaboraram ou ao seu lado lutaram.
Quem fez parte da polícia, imprensa, administração e tribunais afegãos, acreditando nas promessas, manu militari, das tropas norte-americanas, deve ser protegido.
São muitos? O Mundo é grande.
III
Os sinos dobram pelas mulheres do Afeganistão.
Dobram por todos quantos, nas paisagens cénicas desse enorme país da Ásia Central, acreditaram na democracia e na liberdade.
Pela decência.
Os sinos dobram pelo Ocidente.
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