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A língua de D. Afonso Henriques
Há uns meses, fez-me um amigo uma pergunta que parece muito simples: afinal, que língua falava D. Afonso Henriques? Não é simples. Pelo contrário, podia ser tema de dissertação de Mestrado ou mesmo tese de Doutoramento que se prolongasse por uma carrada de anos.
A minha hipótese, que teria de argumentar após decifração atenta de mil pergaminhos quase ilegíveis, seria que a sua primeira língua foi o galego então em uso na margem sul do Douro, entre Lamego e Resende, nos lugarejos de Cresconha e Bretiande, para onde, ao que consta, o terá levado o seu preceptor Egas Moniz, na tenra idade de 3 anos. Galego, por ser este o idioma falado por esse célebre Aio, e ser também o que usava o pessoal com quem o infante lidava diariamente: escudeiros, cozinheiras e caçadores, jardineiros e ferreiros, lavradores e tangedores de sinos, sacristães e cereeiros, tecedeiras e fiandeiras, carroceiros, arreeiros, armeiros, zagais e pegureiros, lavadeiras e brunidoras, sapateiros e alfaiates, multidões de servos da gleba e vassalos, peleiros, oleiros, lenhadores, falcoeiros, palafreneiros e tratadores de cães. Além desses, os menos numerosos abades, alveitares, escrivães, valetes pessoais e damas de companhia (bordadeiras de alfaias e intrigas), muitos deles arribados da cidade com modos e maneiras mais pretensiosas, o influenciariam nos dizeres. E tendo em conta que sua mãe era leonesa, e ele, já mais grandito, teria certamente de visitar, de vez em quando, por querelas de sucessão e questões de carreira nobiliárquica, as cidades de León, Astorga, Alcañices e Zamora, algo arranharia de leonês – não de castelhano, que ainda vinha longe o seu império na península – tal como se falava nas marcas de Miranda do Douro. E aos paços onde vivia, haviam de chegar, com bastante raridade (que agrestes por demais eram os caminhos e as acomodações em albergarias), alguns moçárabes tocando e cantando suas jarchas, amorosas umas, brejeiras outras, mas todas a aguçarem-lhe o apetite de entendimento e de riso bem acompanhado. E tinha, além de tudo isso, de aprender a decifrar o que os escrivães assentavam em latinório na sua chancelaria e nas cartas que seguiam para o Papa e que dele eram recebidas, de modo a que ninguém lhe pudesse pregar rasteiras em tratados, testamentos e negócios.
Tinha pois (defenderia eu se fosse com a tese por diante) o nosso rei, em pleno séc. XII, a mesma aptidão que nós, portugueses, hoje temos para entender sem dificuldade as línguas mais próximas (e para julgar que até as falamos sem sotaque), com uma diferença: enquanto hoje a língua universal, praticamente obrigatória, é o inglês, a desse tempo, ali no norte, ainda era o latim. Mas a preferida do nosso primeiro rei seria sempre o galego, a que ele chamaria “a nossa lingoagem”, aliás sem a menor consciência de que era galega, ele, que detestava, dizem, os galegos que tanto encantavam sua mãe Dona Tareija.
Eis aqui um breve excerto de conversa surpreendida de manhãzinha em Cresconha, antes de sair Afonsinho de casa para ir à vinha verter o seu xixi:
– Ó tia Briolanja, hoije habemos tchuiba e bento, tal arengaba ónte frei Joane, ou haberá sol que bonde para um bailho em o eido?
– Nem tchuiba nem sol, olh’ó dianho do moço, raios e coriscos! que solo pensa an folias an beç de se achegar ò cabalhico qu’anda alhá a toçar nas bouças do bezino, sen freno nem peias!
(É que, se ele falava um galego puríssimo, a tia Briolanja ainda mantinha resquícios de leonês no seu linguajar).