Nini nasceu com neurofibromatose, teve cancro nas vias óticas com dois anos; depois de doze anos de paz, veio a leucemia, a doença não cedeu, Nini não desarma: “Vivo um dia de cada vez, agradeço o que tenho e não penso no que me falta.” Entram em ação os cuidados paliativos, Nini continua a ser seguida pela sua oncologista, mas passou a ser acompanhada também pela Equipa Intra-Hospitalar de Suporte em Cuidados Paliativos Pediátricos do IPO do Porto. “A melhor maneira de explicar o que são Cuidados Paliativos é dizendo que oferecem a alguém muito doente o possível – quer do ponto científico, quer humano – exceto a cura da doença potencialmente fatal. Oferecem os cuidados necessários, adequados e proporcionais à situação. E se isso parece pouco é apenas porque nos habituámos a olhar a morte como um fracasso, em vez de uma inevitabilidade.” Por outras palavras, há sempre algo mais a fazer, estes cuidados são prestados por equipas multidisciplinares e interdisciplinares com médicos, enfermeiros, psicólogos e assistentes sociais, outras valências serão suscitadas, como assistentes espirituais, fisioterapeutas, terapeutas da fala e terapeutas ocupacionais.
João tem o mesmo número de anos que de quilos: 14. Não faltam as dificuldades respiratórias, crises epiléticas diárias que não cedem aos quatro medicamentos antiepiléticos que toma e deformidades ósseas na anca e coluna, associadas à imobilidade e às alterações musculares. Não anda, não fala, não chora, não ri. Tem uma doença sem nome, a mãe é combativa. João é seguido pela Equipa Intra-hospitalar e Domiciliária de Suporte em Cuidados Paliativos do Hospital Pediátrico de Coimbra, equipa que segue doenças neurológicas, neuromusculares, genéticas ou metabólicas. A pediatra, Cândida Cancelinha, diz que a forma como o trabalho de equipa é explicado pelos colegas influencia muito a recetividade dos pais. A mãe de João tem esperança, a equipa visita o doente em casa quando ele piora, é um contacto direto, uma disponibilidade que não se encontra noutros serviços do hospital, a equipa dá uma resposta quando é necessária.
Maria José tem 70 anos e nunca tinha estado doente, diagnosticaram-lhe um cancro nos ovários. Olhar para trás e não para a frente foi a forma que encontrou de viver o melhor que pode. É acompanhada pela Equipa Comunitária de Cuidados Paliativos Beja+, estava reticente, mas mudou de ideias quando recebeu a primeira visita da equipa em casa. A autora observa que quando a pessoa doente e a família conseguem reconhecer e apropriar-se do seu sofrimento conseguem também encontrar caminhos para o aliviar um pouco.
Francisco Brandão Ferreira foi jornalista na Rádio Renascença e depois na RFM, reformou-se e a doença chegou depois de cinco anos, com um cancro no pulmão, a seguir foi detetada uma metástase no cérebro, faz quimioterapia. Descobriu-se que o seu cérebro entrara em autodestruição. Incapaz de andar, debilitado e confuso, do hospital passou para uma unidade de cuidados continuados. Por sugestão da médica de família, a mulher, Manuela, recorreu à LInQUE, uma cooperativa que conta com uma equipa multidisciplinar. Uma das fundadoras, a médica Elsa Mourão, depois da experiência que teve no INEM, o problema não era a morte das pessoas, era a morte desacompanhada, assume que uma das dificuldades de encarar esta realidade passa pela formação médica geral. E também aqui a autora observa que o tempo é um inimigo cruel de quem tem demência ou outras doenças progressivas. É graças aos cuidados paliativos que Manuela está consciente de que se aproxima o dia em que terá de fazer uma difícil transição: deixar de amar Francisco na sua presença para o amar na ausência.”
A autora não se limita a esta verificação, procura saber o depois, volta a ouvir os cuidadores, e, quando possível, os doentes, caso de Maria José Mestre ou da Nini. Temos por último Djamila, autora e doente conversaram na Unidade de Cuidados Paliativos das Irmãs Hospitaleiras da Idanha, em Belas, Djamila tem um cancro no útero, já com metástases noutros órgãos, veio para Portugal à procura de soluções que já não existem na Guiné-Bissau. É uma paciente com necessidades complexas, pois não se consegue manter de pé, precisa de um rigoroso controlo sintomático, a urina e as fezes são drenadas diretamente para sacos externos. O médico paliativista Paulo Pina recorda que os pacientes chegam demasiado tarde; é que além dos sintomas físicos chegam com outras necessidades: fragilidades emocionais, dúvidas espirituais, uma família preocupada.
É o momento propício para a autora discorrer sobre a amplitude dos cuidados paliativos:
“A morte é cada vez menos um acontecimento inesperado, prematuro e repentino. Os números mostram que a maioria das pessoas não morre no decurso de eventos súbitos, como um ataque de coração fulminante ou um acidente de viação fatal, mas de doenças crónicas e prolongadas que causam sofrimento. Isso significa que morrer não é apenas um momento, mas um processo, que será mais ou menos penoso consoante as decisões médicas tomadas, os cuidados paliativos a que cada um tem acesso e a cultura familiar, social e comunitária em torno destes temas.” O epílogo da obra é uma peça de grande humanidade sobre quem morre e quem fica, avulta um mistério, quando a autora escrevia, Djamila continuava internada em Belas, pois há mistérios que nem as equipas médicas sabem explicar.
De leitura obrigatória, mormente para quem é profissional de saúde ou tem a seu cargo doentes de longa duração ou mal incurável.
Mário Beja Santos