a crónica de SANTANA CASTILHO

Três, de tantas páginas que devíamos virar
Talvez não seja estranho que os partidos políticos se tenham identificado, embora cada um a seu modo, com a mensagem de Ano Novo de Marcelo Rebelo de Sousa. Bem vistas as coisas, já antes do Natal a reacção foi de bonomia, quando Marcelo, deselegantemente, nos mandou ter juízo, enquanto deambulava pelo comércio de Braga, a perguntar o preço do bacalhau e a comprar meias. Num discurso equívoco, o que disse agora sobre as eleições e sobre o desejável funcionamento da AR foram banalidades. Mas os partidos políticos gostaram. Falou de virar a página, sem dizer para onde. Mas os partidos gostaram. Talvez porque se preparam, em campanha, para nos dizer pouco sobre tantas páginas que o país gostaria de ver escritas, de modo claro.
Vejo uma sociedade cada vez mais complacente perante a perspectiva de ser cuidada em vez de se cuidar. Sei que o medo é um dos instrumentos mais poderosos para condicionar o comportamento humano, particularmente quando as questões em presença são de saúde. Mas é tristemente limitado o futuro de uma sociedade que aceita trocar viver por existir e liberdade por segurança. Esta é uma página que devia ser virada.
Falamos muito de descentralização e partição de poderes, como necessidades fundadoras das democracias mais sólidas. Mas, paradoxalmente, aceitamos, por via de uma tecnologia digital de que nos tornámos escravos, a concentração de todos os poderes em meia dúzia de organizações globais. Cada vez mais, televisões e jornais promovem o que o monoscópio da globalização e do mainstream permite ver, quando o seu papel deveria ser o de ampliar o ângulo de visão, já que globalização é uma coisa e universalismo é outra, bem diferente. Eis uma segunda página a virar.
A terceira página é a da Educação. Sobra a evidência de que os actuais responsáveis foram, mais do que incompetentes, perniciosos, porque contribuíram para que a escola de que o país carece fosse desaparecendo todos os dias. Se Tiago Brandão Rodrigues e João Costa tivessem consciência e soubessem, ao menos, o que os alunos não sabem, sentir-se-iam culpados por terem promovido, com a falácia das aprendizagens essenciais e o logro criminoso da falsa inclusão e do falso sucesso, um preocupante crescimento de jovens descerebrados e sem esperança, marcados pelo desconhecimento e pela imaturidade. A palavra educação só devia evocar a ideia de evolução, que não de involução. Mas foram de involução os últimos dois anos, pelo menos, com 21,9% (Eurostat) das nossas crianças em risco de pobreza ou exclusão social. Nas mochilas dos nossos alunos estão hoje muitos traumas provocados pelos confinamentos, pelas quarentenas, pelo ensino à distância, numa palavra, por uma escola distante e incompleta.
Abundam os estudos (vide, por outros, “Efeitos da Pandemia Covid-19 na Educação: Desigualdades e Medidas de Equidade”, do CNE) sobre os efeitos do SARS-CoV-2 nas aprendizagens dos alunos e sobre a escassez de professores. Faltam os compromissos políticos claros para resolver esses e demais problemas.
Urge reverter as alterações sem sentido no normativo da carreira docente e a catadupa de malévolas iniciativas políticas para dividir os professores, a par da anulação de direitos, que culminaram com o congelamento de salários, primeiro, e o inominável apagamento do tempo de serviço já prestado, depois. Os professores precisam de tempo para além das suas actividades lectivas. Tempo para refletir sobre a arte de ensinar e para continuar a sua formação, lado a lado com os mais experientes. Tempo para actualizar a sua formação científica. Tempo para dedicar aos seus filhos e à sua família, tão importantes como os filhos dos outros e as famílias dos outros. Os professores não podem ser meros funcionários de uma sorte de repartições públicas, a que se assemelham hoje as escolas.
Se os protagonistas não mudarem, a sociedade continuará a ser formatada para olhar para a classe docente como geradora de despesa e não como alvo de um investimento necessário para o futuro melhor de todos. Se os protagonistas não mudarem, serão reforçadas as tendências para os autoritarismos de que já tivemos demonstração abundante.
Precisamos de reconstruir o sistema de ensino. E o papel que o próximo ministro terá na tarefa reside na capacidade de envolver nessa reconstrução professores, pais e alunos.
In “Público” de 5.1.22
2 comments
14 shares
Like

Comment
Share