UMAS CRÓNICAS DE 1971 MAS PODIAM SER DE 2024

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crónica 2. a quem me ler, maio 17, 1971
  1. Há dias, conversava eu com um político, antigo ministro, homem ainda novo, inteligente, de trato afável, conciso e lúcido, e admirava nele o seu poder crítico. Discutia-se no ar, numa daquelas discussões sem bases nem fins determinados em que palavras vão puxando palavras, as pessoas vão ficando suspensas nelas e pouco mais. Nós, os dois, que até então ficáramos aparte, interviemos na contenda: eu como ouvinte e espetador, ele como contendor…e então, coisa curiosa, todos se voltavam contra ele num nítido esforço de confundir, baralhar, e ele, calmo, apenas clamando para ser ouvido, um a um, os ia aparando, aos golpes, até que na discussão só ficaram dois. Ele, com os seus 50 anos, mentalidade jovem, aberta, elástica, e o outro, um jovem de 30 e poucos, já habituado ao comodismo das posições catedrais defendendo a sua torre de marfim. Pois seguia eu empolgado a rápida cavalgada que os dois faziam e vi o espírito lúcido do mais velho voltar sempre ao ponto de que derivavam, mas com uma segurança e um saber que me extasiaram. No meu quase silêncio, fui-me sentindo, aos poucos, batido por aquele homem extraordinário e vi toda a sua juventude, a sua força, enquanto o outro com a sua reduzida agilidade mental se remetia a uma esporádica intervenção, em que se desdizia, e a cada contradição, ia cedendo campo ao opositor. Mas, dizia eu, que conversava com esse homem, que considero brilhante, e ele com a sua linguagem aberta ia descrevendo situações, narrando abusos e enganos e, ao mesmo tempo, criticava toda uma estrutura errada. Considerava desacertada a forma como se recolocavam ministros e similares e aos lugares de favor chamava espelhos de uma certa corrupção, pois dos negócios estrangeiros passara ele a diretor da junta nacional de frutas. Comentava, jocosamente, que gostando apenas de batatas, ananases e laranjas tinha de fazer planeamentos sobre a cultura de tomates. E tinha um horror danado aos tomates, tinha vontade de mandar trocar essa cultura pela de ananases. E perguntava, como se pode ser eficiente, como programar devidamente, se dos negócios externos passara aos problemas internos das frutas? Mal vai a governação no meu país, mas pior iria se nos negócios estrangeiros houvesse um produtor de frutas… Citando Brecht (sem insultar ninguém):

“Não há pior analfabeto que o analfabeto político. Ele não ouve,

não fala, nem participa dos acontecimentos políticos. O analfabeto

político é tão burro que se orgulha de o ser e, de peito feito, diz

que detesta a política. Não sabe, o imbecil, que da sua ignorância

política é que nasce a prostituta, o menor abandonado, e o pior de

todos os bandidos, que é o político vigarista, desonesto, o corrupto

e lacaio dos exploradores do povo.” Bertold Brecht (1898-1956)

  1. Está muito em voga agora uma espécie de moda nova e única: que as famílias de bom-tom e com pergaminhos, sempre que se reúnem, seja por festa ou luto, chamem a essas reuniões forsytianas[1]. Aqui está como eu admiro a democratização de uma ideia aristocratizante, apenas não serei capaz de perdoar que tal seja provocado pela exibição na TV de uma série chamada “The Forsyte Saga” da autoria de William Galsworthy. Mal vão as pessoas na minha terra vendo boa televisão. Veio tudo isto a respeito de um funeral onde estive presente e onde tal foi dito para meu espanto. Nos funerais, aprecio, até certo ponto, a parte social pois se fala, se discute, mas – no fundo – se convive. Por vezes, nem nos lembramos que estamos ali por causa de uma morte; aliás, o significado de morte vai variando com as idades, para nós – mais novos – e para os muito velhos quase nem a sentimos, uns por afastamento, outros por proximidade, mas os de meia-idade esses apanham choques grandes. Ainda não estão suficientemente perto dela para a sentirem e temerem mas não estão já tão longe quanto pensavam e começam a sentir-se não envelhecidos, mas velhos. Afinal, o que será a morte, o fim da vida ou uma nova vida? Para nós, cujas conceções religiosas do mundo andam arredias ou são peculiares, morte é apenas um ponto na vida, tal como o havia sido o ato de nascer. O nascer, para nós, parece-nos sempre insensível e é assim que pressagiamos a morte e, no entanto, cruzamo-nos com ela diariamente num desafio constante do qual – muitas vezes – nem nos chegamos a aperceber.
  2. Há arreigada em mim uma noção que gosto imenso de expor, apesar de incrédulo e cético. Acredito – e acredito mesmo – na evolução seja em que campo for (estético, artístico, musical, político, histriónico, etc.). Começo por fazer um aparte: à moda, como sendo aquilo que em algum momento agrada a uma maioria por muito minoritária que seja, mas não quero exprimir qual a espécie de agrado, nem suas causas e efeitos. Portanto, evolução não será moda. Evolução será – em períodos longos – a passagem de um estágio inferior a um necessariamente superior (não interessa quanto), portanto, um movimento vertical, ascendente, logo, dinâmico. Involução será a atitude estática, horizontal em que partindo de “A” se chega a um “B” que, embora diferente, não é superior, ou, por recriação de um ∂ anterior a “A” que obviamente não levará a “B”. Involução será também, aqui já, noção dinâmica embora num momento (estática em relação a períodos longos), um ciclo que se conclua num estágio intermédio, uma derivação pois intermédia de “A” a “B”.

Voltando à evolução e dado admitir a intelectualidade no homem, aquela levará necessariamente à perfeição, embotar aqui deva excluir a criação involutiva como é óbvio, que, pelas razões anteriormente apresentadas, não levará a nada.

Tudo isto serve para poder afirmar agora que discordo das pessoas que fazem inventários ou balanços do presente, pois tal só poderá ser feito num futuro indeterminado em que todas as coordenadas à distância do tempo possam ser tomadas em consideração, ao estádio anterior e ao próximo. E se há definitivamente coisa que eu não veja neste país, é evolução.

[1] Não do escritor Frederick Forsythe mas da “Saga da Família Forsyte” de John Galsworthy


crónica 3. napoleão e eça. 20 maio 1971

Aqui. Sentado. Deitado.

Neste silêncio mudo

Envolto por montanhas de livros

Inicio um problema matemático:

Conto os anos de vida e os livros

E nem tempo terei para ler os prefácios.

E Napoleão à minha espera algures, desejando mais do que nunca com a força própria do despotismo e a linguagem doce do exílio, que me debruce sobre ele e o examine, o estude, o disseque até ao mais profundo recanto da sua alma. Dizem que – pela análise bioquímica feita aos seus cabelos – o imperador morreu vítima de uma excessiva dose de arsénico. Apetece-me viajar e ir até Santa Helena reconstituir – um a um – os passos do prisioneiro e apurar uma certeza que pudesse ser histórica, mas Phillip Roth diz que mais urgente seria ler “Portnoy’s Complaint” (1969).

Mas, no canto mais sagrado da mesa-de-cabeceira há ainda um amigo silencioso que está certo que mutuamente jamais nos abandonaremos. Morto há setenta anos, ele é terrivelmente atual e espero, a qualquer momento ouvir bater à porta, e de seguida alguém entrar a anunciar-me a chegada dele. É tão atual como se vivesse hoje. Espera-se a cada página de leitura que fale de nós, como se tudo o que está escrito se referisse apenas a um dia de ontem extraordinariamente presente. A sua fluência e o seu ecletismo temático conduzem-nos e subjugam, são a sua imaginação e as suas vivências quem nos chama do lado de lá do abismo onde, isolados, repousámos à espera do milagre. É um deus que desce do Olimpo para nos chamar à realidade, descrevendo – a cada passo – a podridão celeste, e – nós – boquiabertos e indefesos o admirámos e invejámos. Cremo-lo maior do que Napoleão e os seus Impérios foram sempre reduzidos, embora construídos em bases que se consolidaram na razão inversa do escoar do tempo. É a ti, meu Eça (de Queirós) que me entrego, e é com as tuas asas que desejo voar. Espero que me perdoes a ousadia.

Não asfixio ainda por entre os livros mas anoto alguns mais que talvez consiga adquirir na Feira do Livro. Pergunto aos que lá passam e não param como podem viver sem livros, a menos que já vivam sem pão nem água. Mas não, não acredito nesses eremitas. Os que compram livros por comprar decerto se gabam de comprarem a cultura e aqueles que lhos vendem se gabam de a venderem. Mas nada tenho a comprar ou a vender, tenho apenas de estudar e de ler necessito para aprender. Que me interessa a Economia no curso do mesmo nome, se nunca me perguntam sobre Eça? Por que me obrigam a estudar sem ler? Só lendo se aprende…e já Napoleão cercado de abutres no leito de morte agoniza. Escrevem-se bilhetes sobre bilhetes e há sempre uma nova última vontade a firmar em papel. Quando acabar por morrer será ainda ele quem está escrevendo a História enquanto os vivos nem nas entrelinhas figurarão. E, general ou imperador foi sempre um homem ambíguo que se foi matando aos poucos. O arsénico só serviu para abreviar a morte corporal. Aos poucos Santa Helena, a ilha ia aniquilando a alma mais do que o corpo moribundo. Nela vimos o mesmo génio que chorava ao lembrar a pátria e o que dela havia feito. Sonhou tão alto que acordou antes de acabar o sonho. Todos os anos irei lembrar-me de lhe honrar a memória a 5 de abril, mas nada mais prometo não vá o Eça ter ciúmes. Vai longa esta missiva onde as ideias se libertam e se evolam deixando a palavra suspensa pelo pensamento.


crónica 4. outubro 12, 1971
  1. É muito vulgar agora ouvir-se falar de turismo, suas vantagens, necessidades, criação de estruturas e de bases, planeamentos, urbanizações, e todo um mar de termos vagos e imprecisos que nos asseguram – de antemão – que nada virá a ser feito como devia. Por outro lado, começam a ecoar – apenas agora – protestos já repetidos de zonas mais atingidas pelo flagelo e ouvimos falar de subidas de custo de vida, níveis de preços, inflação, hipertrofia económica, redes hoteleiras, canais de distribuição, etc.,…De tudo isto, nós, subdesenvolvidos ouvintes, quase leigos em tais assuntos, não nos podemos impedir de encolher os ombros de incompreensão, mas algo está indo terrivelmente errado pois, por experiência pessoal, constatámos como é caro dormir e comer no Algarve. Não nos vestimos lá nem tivemos dinheiro para diversões. Facto curioso: durante uma semana, conseguimos falar em português a três pessoas! “No smoking” – “Pas de pourboir” – “Hier gibt es Deutsche zeitungen” Estes e outros dísticos vi por aquelas paragens e andei horas à procura de um “Aqui fala-se Português” sem ver nenhum. Começa a ser triste ser-se português em Portugal, a menos que surjam reformas…
  1. Nesta época do ano aos hospitais públicos acorrem muitos velhos com doenças imaginárias. É curioso vê-los chegar, trémulos e encolhidos com vozes cavernosas, dores e queixumes, reais ou improvisados. Os internos, compreensivos dão-lhes baixa e eles ficam radiantes. Com as suas maleitas inventadas vão ficando ao longo dos corredores cloroformizados em camas de emergência, piscando os olhos já inseguros às enfermeiras mais azougadas. Passadas algumas semanas, esgota-se – para cada caso – a boa vontade dos clínicos empenhados em ajudar outros tantos que aguardam vez. Dos que saem, os curados vão contrafeitos pela troca de um lar pela outonal temperatura das noites nos jardins, inquietos ex-clientes de comida abundante e aconchegada dormida naquela Hospedaria da Caridade sub-reptícia, mas esses não tardam a esgotar a paciência dos médicos. Esse benfeitor corpo clínico é impotente e inoperante num problema a nível geral, onde as estruturas de apoio à terceira idade falham na sua rudimentar fase de projeto irrealizável…assim, apenas se vão minorando problemas quase individuais num perpétuo adiamento dos direitos básicos. Desses pseudodoentes muitos não voltam, nem deles se ouve mais falar. Outros, acabam por morrer iludidos no hospital com um ténue sorriso nas suas bocas desdentadas. Ninguém irá reclamar os seus corpos cujas ossadas acabam por ocupar as mesas dos laboratórios de anatomia servindo de cobaia às experiências de caloiros despreocupados. IMPÁVIDOS e SERENOS vamos assistindo indignados mas MUDOS às mortes que se repetem, onde, como e quando calha, sem alguém efetivar as reformas de que tanto se fala.
  2. …por falar em reformas veio-me à ideia, a do ensino superior. Qual não foi o meu espanto – há dias – ao passar pela Universidade e vê-la fechada com o seguinte aviso: “Encerrada para limpezas…“ verdade seja dita que a Reforma tinha de começar por algum lado…
  1. Escreveu Roland Barthes: ”O prazer do texto, tal como o simulador de Bacon pode afirmar: “Nunca se desculpar, nunca se explicar”. Nunca, nada se nega: “Volverei o meu olhar, essa será pois a minha única negação!” Ficção de um individuo (qualquer senhor Teste ao contrário) que por si mesmo aboliria todas as barreiras, as classes, as exclusões – não por sincretismo, mas pelo mero desembaraçar do velho espetro – “a contradição lógica” que amalgamaria todas as linguagens, mesmo as reputadas incompatíveis; que suportaria, mudo, todas as acusações de ilogismo, de infidelidade; que permaneceria impassível face à ironia socrática (levando o “outro” ao supremo opróbrio: contradizer-se) e ao terror legal (quantas provas penais baseadas numa psicologia da unidade!). Tal homem seria abjeto para a nossa sociedade. Os tribunais, a escola, o asilo, a conversação: “Quem suporta sem vergonha ou contradição?” mas este anti-herói[1] existe: é o leitor do texto, no momento em que atinge o seu prazer. Então se desfaz o velho mito bíblico, a confusão das línguas não mais é uma punição, o sujeito ascende ao clímax[2] pela coabitação das línguas que trabalham, lado a lado. O texto do prazer é BABEL FELIZ. Que esse seja também o vosso.

[1] Contre-héros.

[2] Jouissance: Terminologicamente ainda vacilante…de qualquer forma haverá sempre margem para indecisões: a distinção não será fonte de classificação segura, o paradigma, o sentido não será precário, revogável, reversível, implantável