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1. crónica 1, maio 15, 1971
Daqui bem longe donde vos escrevo, o tempo vai, como é seu hábito meteorológico, influenciando a disposição das pessoas. É assim que me encontro com a chuva ao dar ao papel mais umas impressões deste país onde os homens vão tendo, cada vez mais, coisas para os preocupar.
Também é de chuva o ambiente intelectual pois as cabeças, cada vez menos, vão servindo para pensar e, creio até, que algumas nunca o fizeram.
Podia até dizer que é de crise a época se não o tivessem sido todas, mesmo as mais brilhantes e prósperas.
Na realidade, os homens andam arredios dos livros e eu compreendo-os: de há uns meses a esta parte, o marasmo, a calma e a inatividade livreiras e livrescas transmutaram-se a ponto de já não as reconhecermos. Sob o pretenso título de qualidade, o mercado tem sido invadido por tremendas doses de livros de bolso de todas e mais algumas editoras, num movimento que desmente toda a estagnação.
A única nota saudável deste ataque, tem sido, até agora, dada pelos preços que se apresentam otimamente reduzidos, e agora os editores nem se queixam de lucros, margens, impostos, etc. Eu sei que quando há fogo em nossa casa lhe deitamos água e só depois vemos que, embora nada esteja queimado, ficou tudo horrivelmente manchado e molhado. Assim os livreiros se empenharam em lançar obras e mais obras com todas as facilidades e agora que começam a fazer contas são eles a precisarem de facilidades.
De política isto não está indo muito melhor ou pior, embora o senhor Presidente do Conselho há dias se mostre apreensivo – e por um hábito que há muito se mantém neste país – quando um presidente está apreensivo, todo o povo o acompanha, mesmo aqueles que normalmente votam contra ele. Se está apreensivo é por que não sabe o que há de fazer a um problema que não é de agora, melhor dizendo, é de sempre.
Pois cá neste ocidental país, quando alguém sai de um ministério, caladinho e sem dizer nada, ei-lo que aparece logo a seguir sentado à mesa da presidência de um conselho de administração de alguma opulenta empresa. Pois então, porque não? Foi ministro, deu o seu contributo à nação, é justo agora que seja a nação a cuidar dele, e para tal, nada melhor que as cómodas cadeiras dum conselho de administração. E por outro prisma, por que haveria ele de voltar a ser quem era dantes? É necessário manter o progresso e evolução. Depois, o povo vê, o povo lê e começa a tecer comentários. Como sabem, um presidente teme sempre os comentários do seu povo, em especial numa democracia como a portuguesa.
Por outro lado, todo o ministro ou ex, tem amigos, tem influências, e afinal como vai ele presidente dizer-lhe: “Olhe o senhor não vá para esse lugar, deixe-o para os que são mais competentes.” E logo o ministro se sentiria reformado, que é a coisa mais aviltada que um ministro pode sentir e é por isso que vai para um conselho de administração.
E, afinal o elevado nível de vida e as receções? Como iriam ser mantidos esses bons e saudáveis hábitos desta república?
É por tudo isto que o presidente do conselho anda apreensivo e aquele sorriso que todos nós lhe conhecíamos anda agora menos aberto, mais mortiço. É que no fundo, ser presidente é uma estopada, isto de ter todos os dias nove milhões e meio de dores de cabeça é um pouco forte!
Falámos de livros e política e falta-nos falar em pessoas, sociedades, festas, enfim em todos esses atributos sociais que de nossos avós herdamos. Também aqui o tempo se tem feito sentir ensopado, pois depois da “molhada” queima das fitas, esta cidade [do Porto] continua mais pacata e trabalhadora que nunca, cada vez mais metida consigo própria. No entanto, pelo que dela conhecemos, é bisbilhoteira, como se fora uma vila de província. Nisso, provavelmente, se tornará, com toda a futilidade que, apesar do trabalho e dos que trabalham, vai caracterizando a sua outra face. É um snobismo pobre e até, um pouco ordinário, como o daquelas velhas que nada tendo nelas de atrativo, se vão empoando todas para passear em Santa Catarina e tomar o chá das 5 na Confeitaria Confiança.
À noite, continua parecida com uma cidade fantasma em que os espetros – oh monotonia – são sempre os mesmos nas mesmas esquinas. É sem dúvida agradável ter uns manes e uns vates como os nossos, além do mais, é saudável e já vai indo longa esta crónica, mais enfadonha que todas as outras e mais chuvosa também.
É bom, por outro lado, estar aqui neste isolado país, afastado de tudo e de todos. É despreocupante. É bem próprio de nós, este amolecimento em que vamos consentindo, nesta preguiça de estar longe da Europa. Este torpor que tão bem se dá com aquilo que ainda há em nós, de latinos, apesar das misturas de sangues e raças. E por o sol já se ir alevantando, aqui vos deixo.