Faleceu Eugénio Lisboa. RIP.

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Faleceu Eugénio Lisboa. RIP.
Deixo aqui um texto dele, que o retrata muito bem e de que ele gostava muito:
«Se tivesse podido, tinha ficado sempre na mesma casa, em Lourenço Marques. Com os meus móveis, velhos, toscos, com os livros nos mesmos sítios. Gosto de conhecer bem as casas onde vivo e gosto ainda mais que elas me conheçam a mim. Quando ficamos acertados um com o outro, quando nos habituamos, parece-me então, que tudo se torna possível. É como se ficasse apetrechado para tudo!
Quando tinha catorze anos, um colega e amigo do meu pai, em África, chamou-me a sua casa e deu-me para cima de uma centena de livros e até uma pequena estante. Trouxe tudo para minha casa, pus a estante com os livros no meu quarto e começámos a conhecer-nos. Aquilo passou a ser o meu mundo. Estendia-me na cama e ficava a olhar para toda aquela riqueza. Ia lendo os livros, o que era talvez importante, não sei, mas sobretudo, gostava de estar ali. Dávamo-nos bem, eu e os livros e não me parecia nada necessário, nem aconselhável mudar aquele estado de coisas. Aquela casa calhava-me, e aquele quarto e aqueles livros que eu ia lendo: Plutarco, Kipling, Conrad, Lawrence, Stendhal, Tagore, Charlotte Brontë… Gostava imenso destas ficções mas gostava delas ali, naquele sítio, naquele sossego, naquele isolamento africano. Não sei se me apetecia, mas acho que não, mudá-los um dia para outra casa, noutra terra, noutro continente. Embora soubesse, com a cabeça, que dentro de três anos teria que partir para Lisboa, para estudar na Universidade, o meu coração não estava nessa: além do mais, três anos era muito tempo. Tudo andava ali tão devagar e é tão bom que seja assim.
Na casa, sentado no chão ou estendido na cama a ler, eu ia ficando cada vez mais em sintonia profunda com o meu quarto e com aqueles livros: Merimée, Dostoiewsky, Victor Hugo, Musset, Panait Istrati. O meu mundo ia-se alargando ali. A Senhora de Rênal ficou para todo o sempre ligada ao meu encontro com ela, naquela casa. Ainda hoje, quando releio o livro mágico de Stendhal, regresso automaticamente à casa da Rua Mendonça Barreto. Pego no Rouge e instalo-me mentalmente lá: a cor do dia, o bom cheiro africano, o prazer demorado, o nascer palpitante do meu amor pela Senhora de Rênal – tudo recomeça. Tudo regressa. Aquela casa ficou dentro de mim e gostaria de acreditar que, de algum modo misterioso, eu fiquei dentro dela, mesmo que ela tenha desaparecido, como é quase certo que aconteceu. Também foi ali que me encontrei com o Huckleberry Finn e com a Katucha da Ressurreição. Todos esses livros que ainda gosto de reler ficaram, na minha memória e no meu afecto, ligados àquela casa. E o meu cão, o Nero, que eu levava à praia e vinha comigo para a cama, enquanto eu recomeçava o meu romance com a Senhora de Rênal. Não sei se tudo aquilo só seria possível naquela casa, mas a verdade é que tudo aquilo ficou irremediavelmente a só ser possível naquela casa.
A casa nem sequer era boa. Mas era melhor do que ser boa: era a casa a que me tinha habituado, era a casa em que tantos encontros e milagres aconteciam. Era dali que eu via a Europa para onde havia de ir um dia e acho hoje (e achava então) que a Europa era boa vista dali, daquele quarto. A Florença do Lys Rouge, percebida através da leitura, naquele aconchego, era multiplicadamente bem melhor do que a outra verdadeira que aguardava a minha decepção. Como era grande e mágico e sedutor o mundo visto do meu quarto da Rua Mendonça Barreto de uma Lourenço Marques que já não existe! Ali sofri com a Jenny de Fontanin e com o Jacques Thibault e com eles sonhei Paris que era tão apetitosa enquanto acariciava o Nero.
A casa tinha um quintal atrás e um pequeno jardim à frente e uma cave enorme e um pouco assustadora. Depois do almoço, enquanto me não decidia a estudar ou a fazer os deveres, lia o Plutarco – no quarto, claro. Assim, aquele quarto se ia transformando na Grécia, em Roma e na Roménia de Adriano Zograffi. Foi também ali que chorei com o Adeus às Armas (numa edição brasileira), como foi ali, pouco antes de partir para Portugal, que fui apresentado à Katherine Mansfield.
O quarto ia sempre ficando maior e eu a caber nele cada vez melhor. Tanta coisa ali tinha acontecido e com gente de tanto lado diferente, que o quarto era realmente um mundo. Sair dele era ir para mais pequeno. Foi o que me sucedeu em Setembro de 1947. Quando me despedi da casa e do Nero (e dos meus pais, é claro) e parti para sempre daquele cantinho a que quisera como se fosse parte de mim e no qual me fizera como nunca voltou a acontecer. Acho que só se tem uma experiência assim uma vez na vida. Também não há quartos por aí aos montes. Houve aquele e já não foi mau. Julgo que há muita gente que nunca teve nenhum. Pelo menos como aquele. De onde se via a cidadezinha de Verrières, que veio depois a caber inteira no interior do quarto e onde acabou por ficar, com a Senhora de Rênal dentro dela e portanto dentro dele. E dentro de mim.
Gostaria tanto de acreditar num além onde pudesse voltar a encontrar a minha casa, o meu quarto, o Nero e a estantezinha de prateleiras mínimas onde cabiam à justa, as novelas Inquérito que eu lia como quem descobre! Porque não há uma máquina do tempo que me permita voltar à Mendonça Barreto e encontrar ali, pela primeira vez, a Senhora de Rênal a perguntar-me, com uma doçura que me trespassou: «Que voulez-vous ici, mon enfant?»
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