JORGE ARRIMAR MEMÓRIA DO 38º COLÓQUIO DA LUSOFONIA

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Memórias e Literatura na Casa das Artes
Durante o 38º Colóquio da Lusofonia, que decorreu na ilha de S. Miguel (Açores), na primeira semana deste mês de outubro, apresentei uma comunicação intitulada “Angola e Açores na Memória e na Escrita”. Dado que, não faz sentido, colocar aqui, na íntegra, o texto em questão, vou postar apenas a sua parte final, que conduz a um poema que algumas pessoas pediram para aceder mais tarde. Trata-se de um poema inédito, que coloco no final deste texto, inspirado na rua de Santa Catarina, em Ponta Delgada, onde morei em tempos.
No intervalo que se seguiu e já fora do auditório do Centro de Artes Contemporâneas onde decorria o Colóquio, deixei-me ficar numa espécie de pátio, onde soprava uma leve e fresca brisa que vinha do mar. Entretanto, reparei numa pessoa de barbas brancas, em contraste com o negrume das paredes do edifício. Por breves instantes, lembrei-me de Antero de Quental. Afinal, até estava na ilha do poeta. Aproximando-me, percebi melhor quem era. Um poeta, sim, mas não da poesia que se escreve, mas da que se inscreve… nos diversos materiais que os artistas plásticos manipulam. Na verdade, um outro Antero ali estava, o dos poemas desenhados, pintados, moldados, e dava-se pelo nome de Urbano Resendes. Não o via há quarenta anos. Uma eternidade. E fui eu que o reconheci. Urbano encontrava-se naquele local, não porque estivesse a assistir ao Colóquio, mas por estar a montar a exposição que seria inaugurada dali a poucos dias, a 14 de outubro. Infelizmente, nesta data, eu já não estaria na ilha. Mas aquele intervalo, no meu colóquio e na montagem da exposição dele, permitiu uma breve, mas interessante conversa. Lembrou-se o Urbano que eu fora seu professor, há quase meio século. O tempo tinha passado inexoravelmente e o jovem aluno de ontem convertera-se naquela figura marcada por barbas brancas, num dos mais importantes artistas plásticos de hoje. A última vez em que tínhamos estado juntos – foi preciso forçar um pouco a memória – encontrava-se no já longínquo ano de 1983, durante a sua primeira exposição individual, no Museu Carlos Machado. A partir daí, Urbano nunca mais parou. Mas deste tempo já pouco soube, pois, a partir de 1985, passei a viver muito longe das ilhas açorianas, em Macau. Aqui foi adquirido o único trabalho de Urbano que tenho exposto numa das paredes de minha casa, uma gravura em que se vê uma menina chinesa a andar de bicicleta. Quando lhe disse que a tinha, esclareceu que foi a primeira gravura de sua autoria. E a conversa foi fluindo. Afinal, havia tanto tempo que não nos víamos! Mas como foi possível falar de tanta coisa numa conversa tão curta? Até das ruas, onde residimos, nos lembrámos. A primeira foi a Rua Coronel Miranda, onde me passeio sempre que regresso a S. Miguel, até parar no Jardim António Borges, como se esperasse ouvir de novo o eco dos meus passos a caminho da Escola Secundária Domingos Rebelo, onde dei aulas e o Urbano foi meu aluno. Da segunda e última onde residi, a Rua de Santa Catarina, informa-me o Urbano que ainda mora nela. Digo-lhe que havia escrito um conto, “Catarina”, publicado em 2013, cujo título e trama têm uma estreita ligação a essa rua, à “nossa” rua. Neste conto, – digo-lhe como se não fosse eu a tê-lo escrito – o autor deixou passar reflexos do ambiente que experimentou nos primeiros tempos de sua estadia na ilha (1976-1977), ainda preso de um forte desenraizamento que a saudade da sua terra angolana agudizava. Sentia-se triste como o lamento dos romeiros, desses peregrinos que percorriam a ilha de xailes pelas costas como asas caídas, arredadas da leveza do voo, negras, de lava sólida a pesar-lhes a marcha. E de repente fico na dúvida se não estaria, naquele momento, a conversar com um romeiro. Na minha memória, a imagem dum romeiro havia ficado guardada assim, como a de Antero, como a de Urbano. E a este só lhe não via o bordão e, quanto ao xaile, era possível imaginá-lo na parede de basalto onde se encostava, como uma longa asa negra que lhe emergia das costas para se fundir no céu carregado daquele dia.
Como são interessantes os acasos desta vida. Na minha comunicação ao Colóquio, a dado passo, referia-me à rua de Santa Catarina e li o poema que ela me inspirara. Uma rua comprida e estreita, com as casas alinhadas numa banda, como se fosse um rio de uma margem só. Rua apertada contra o muro da Fábrica de Tabaco Estrela, de onde subia, pelo menos no meu tempo, um inebriante odor a tabaco, a “erva santa”, como se dizia em tempos mais recuados. Quanto ao poema…
Nunca fumei um cigarro depois do café,
ou depois de depois. Nunca pedi um cigarro
porque me tinha esquecido dos meus,
ou porque queria poupar o último, a boia de salvação
no naufrágio que é não ter cigarro nenhum.
Nunca bebi um café para fumar, mesmo quando
não me apetecia bebida alguma. Nunca saí desvairado
a meio da noite, ou no início da madrugada, só
porque não tinha um cigarro para queimar. Nunca
fumei na cama, nunca perfumei de tabaco
a minha e a roupa dos meus amigos.
Nunca fumei numa esplanada, nem fiz
argolas de fumo branco, cinzento ou azul,
onde me pendurasse para ir até ao infinito.
Nunca fumei num intervalo qualquer,
escondido ou a descoberto, ou em busca
da energia para pensar, meditar, escrever,
poetar. Nunca me fumei. Não foi preciso.
Eu vivi na longa folha de tabaco que é a rua
da fábrica de tabacos estrela, uma rua
de milhões de cigarros, de charutos,
uma imensa cigarrilha. A minha rua
era o cachimbo do Dias de Melo, a tabacaria
açoriana, um narguilé, a boquilha de Natália.
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