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Não é a primeira vez que acontece. Quando decidi fazer um pequeno intervalo na escrita de «Commedia» enquanto fumava um cigarrinho artesanal e olhava para o tecto do cérebro, de olhos bem fechados e abertos ao imprevisto, surgiu-me um novo livro, já com título, «ÁCIDO». Pus-me de novo ao teclado e deixei que as potenciais cenas do livro se concentrassem no texto Zero. Parece que está lá tudo. Ainda não sei. Ora vejam lá se vos parece bem.
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Há ali uma aluvião. Uma merda. Pequena catástrofe do intelecto. Dois tiros. A coisa resolve-se. A aldeia aos gritos. Chega à cidade. O que importa é o café. Três amantes no duche. A claridade da chuva. O risco de ficarem secos é medonho. As ruas atravessam charcos e os doentes espalham-se nas curvas apertadas. A transparência da indiferença. Por que não uma bomba? Os pedintes testemunham aos microfones. São notícia aos farrapos. E na praia um gin tónico concede ao cliente um toque de contemporaneidade. Incham colhões de biquínis nas rochas nudistas. Também há bandeiras para todas as cores. Micoses. Artefactos médicos no canto impúdico. Falsamente solitário. Remessas de emigrantes para pagamentos externos. Chega a noite ao cais, os transportes iluminados de uma pobreza feliz cantam como se as cantorias os libertassem. E libertam. Os transportes. Este é um mistério ancestral. Cantam inundados de esgoto. O preço é um cartão de visita para o impossível. Sem acesso. Raios e Aspirinas contra a contrafacção do enfarte. Iludem-se nas campanhas. Felinas e passerelles como se nada. Há um machado em néon para quem pensa. Anunciado o desastre corre o sangue metafórico na notícia dos especuladores. Na dobra do colar ocultam-se ácidos para uma festa íntima garantida. Um solo de guitarra e pouco mais para um momento inesquecível. Até que a morte. Raspam-se sexos para que tudo fique mais nu às línguas suculentas do festival agridoce da pele. Com quem? Sem face nem máscara. A identificação não faz sentido. Nada faz sentido. O sentido está em desuso. Coisas do passado. Segue e siga para o advento do novo espelho. Sim, temos pena. Dizem os abençoados pela distracção. E riem-se. Colares e amendoins. Decotes e nas mãos os olhos trementes e injectados de ácidos. Lubrificantes para o esquecimento. Ressacas. Faz parte do hediondo espectáculo. Mas é bom. Vendem-se ressacas. Os moribundos facturam esperanças à porta das discotecas. Sim, sim: as cidades sem becos não seriam cosmopolitas. Os painéis de vidro nas alturas chegam à conversa com deuses sentados nas poltronas multicoloridas do desperdício. Riem-se porque faz parte do instinto social para cada minuto de espera. À espera que nada faça sentido e sem sentido atacar e deixar-se ser atacado para que se venham sem se identificarem. Coisa horrorosa, matéria do passado. Agora sim, sem nome, sem rosto, apenas corpo disponível ao furacão, depois o que resta é a repetição do filme: uma aluvião à entrada da morte onde se sobrevive de merda com colares de ácido à socapa da noite. Para um brinde ao rigor do não acontecimento. Um copo mais e a ilegibilidade torna-se legenda do instante. Despertam-se com um sibilino foda-se. Hienas. O riso predador de quem não conhece o sabor da existência. Lixo de contrabando. Tudo bem. Faz parte do quotidiano temente a deus. Sim, a literatura reserva-se ao desenho da lucidez que se deixa perverter pela solidão festiva do refúgio onde se testemunha o prazer do texto. Automaticamente purulento. Como deve ser. O capital incha, explode e reconverte-se. O que tem graça nos velórios despedidos pela modernidade da segurança. O que dizes? Nada. A real gana de me subverter ao aspecto.
Luís Filipe Sarmento, «ÁCIDO», 2022.
Foto: Jose Poiares
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- Jose Manuel R BarrosoQue vulcão, Luís! Que vulcão de imagens! Fica-se enredado na rede das palavras. “Raspam-se sexos para que tudo fique mais nu”. É isso.
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Gabriela SantosÁcido, ácido. Imagino a acidez dos próximos textosEstás muito bem na fotoBeijinhos- Like
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Sao São OncaAmigo cada vez surpreende mais ,abraço .- Like
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Analua ZoéEm cada frase, um filme mental. Construo todas as cenas mentalmente, voo de forma consciente, imagino os personagens , os locais, os silêncios, os gestos, as expressões… As palavras são tuas e é para isso que existe o prazer: de te ler, de viajar por…See more- Like
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Nuno Nazareth FernandesInfernalmente bem escrito com resíduos tóxicos de genialidade própria da esquizofrenia da Academia Sueca. Não tomes a medicação anti – radiação da Agartha e depois queixa-te. Bravo!- Like
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