um (des)conc(s)erto pela Terra

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Um concerto pela Terra
Eu compreendo que os agentes culturais mobilizem recursos e discursos para justificarem o indefensável. Afinal, é disso que eles vivem e mesmo uma iniciativa com fins não-lucrativos traz capital simbólico que opera tantos milagres quanto o outro tipo de capital.
Eu compreendo que o público mais ávido de diversão abandone a coerência para se entregar a dois dias de alegria musical. Afinal, os festivais são os novos arraiais, os palcos são os novos coretos e a malta está farta de silêncio e de enfrentar a sua própria condição mortal, que a pandemia e a guerra tornaram mais vívida.
Eu até compreendo que a população, em geral, se sinta lisonjeada com a escolha de uma das suas paisagens mais icónicas como palco para uma causa que faz gala do compromisso com o ambiente. Afinal, nós pavoneamos a beleza intocada destas ilhas (como se não houvesse aqui nenhuma agressão ambiental) e rendemo-nos a tudo o que a reitere.
Tudo isso eu compreendo. Eu própria senti empatia com os promotores do Festival e a rendição à lisonja. Imagino que tenha sido uma experiência inesquecível viver as Sete Cidades sob o fascínio da civilização ao rubro: natureza atravessada por feixes de luz artificial, a paisagem vergada ao poder do microfone e dos amplificadores, o espírito do lugar subjugado à força da vontade humana.
Até posso compreender tudo isto. Mas há coisas que eu não compreendo.
Eu não compreendo que não se encontre uma forma de honrar a Terra que não seja deixá-la suja de beatas no chão e lixo empoleirado e amontoado, feri-la com níveis altíssimos de potência sonora, esmagá-la com pisoteio que não respeita trilhos nem a vegetação rasteira.
Eu não compreendo que as autoridades competentes se deixem levar pelo engodo. A função delas é tomar decisões difíceis, não apenas quando está em causa fechar ruas ao trânsito mas também fechar a porta à hipocrisia e aos danos colaterais da invasão de milhares a uma área protegida.
Afinal, as Sete Cidades não estão interditas a nós nem a quem nos visita. Qualquer pessoa pode visitar o lugar e homenageá-lo, a sós ou em grupo de amigos e família, sentir o seu ar puro, ouvir os seus sons, receber a vibração da Terra através da vida que lá cresce – enfim, reconhecer lá as presenças que o Festival anulou durante o tempo em que decorreu. Porque foi exatamente isto que aconteceu: o concerto anulou a vista, o som, o cheiro, as cores, o ar e o espírito das Sete Cidades – tudo o que supostamente devia celebrar. E, se isto é celebrar a Terra, não admira que ela acabe por nos expulsar para se proteger.
Eu sei que tenho, no mínimo, 15.000 pessoas contra mim, e algumas delas estão a ler-me. Mas eu não compreenderia o meu silêncio se eu não dissesse o que penso acerca deste assunto. Talvez nos ajude a refletir sobre o que queremos para as Sete Cidades, para estas ilhas, para a Terra.
O que me alegra é verificar que o concerto realizou em pleno o seu propósito. Segundo os seus promotores, ele foi pensado para ser uma “mega-ação de sensibilização”, não foi? Pois eu estou sensibilizadíssima pela “mega-ação” e imagino que quem tenha lá estado também. Portanto, tendo sido altamente eficaz, resta-nos concluir que não se justifica mais nenhuma “mega-ação” da mesma espécie ou calibre.
Repetir a “mega-ação” seria admitir a sua ineficácia da primeira vez. E ninguém quer isto, pois não? A bem da Terra, ninguém quer isto.
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4 comments
  • Sybil Fontes Ávila

    Estou completamente de acordo consigo. Mas até manifestar a nossa opinião já começa a ser difícil. Beijinhos
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    Paula Cabral

    Tão bem explicado! Exatamente o que eu penso. Obrigada por expressar o que muita gente pensa de uma maneira tão clara, sensata e com a devida serenidade!
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