EUA O MORTICÍNIO

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NÚMEROS DE SANGUE
O MORTICÍNIO PELAS ARMAS NOS ESTADOS UNIDOS
11 Dezembro 2021 — DN
António Araújo
Opinião
Causou furor e mais do que justa

indignação o gesto desta semana de um congressista do Kentucky, que se fez fotografar na companhia da família para um postal de Natal, coisa que, assim dita, não traz mal nenhum ao mundo. Acontece, porém, que o parlamentar republicano, Thomas Massie de seu nome (fui ler-lhe a biografia, indescritível), fez-se retratar com mais seis idiotas do seu clã, empunhando todos eles potentes armas de fogo, com calibres pesadíssimos, metralhadoras automáticas e semiautomáticas, material de guerra aberta. E, num remate de alarvidade, legendou a imagem natalícia da forma seguinte: “Feliz Natal! Pai Natal, por favor, traga munições”. Divulgada nas redes sociais, a foto de Boas Festas suscitou viva repulsa, tanto mais que foi posta a circular poucos dias volvidos sobre uma, mais uma, matança escolar na América. Desta feita, um jovem de 15 anos massacrou quatro estudantes, de 14, 16 e 17 anos, num estabelecimento liceal de Oxford, Michigan, na área da Grande Detroit, deixando ainda severamente feridos um professor e outros seis colegas.
Como agora é frequente, as opiniões extremaram-se ao rubro. Do lado republicano, defendeu-se o colega à outrance, por vezes com palavras ásperas, quase pornográficas. Os democratas, de seu lado, mostraram-se assaz revoltados e lembraram que o postal de Massie não era nada inocente. Segundo eles, trata-se de mais um exemplo, entre tantos, da nova estratégia dos republicanos, que optam por transmitir mensagens deliberadamente chocantes, insultuosas até, para que estas se tornem “virais” pela controvérsia gerada, e assim obtenham maior impacto junto de todos. A esta luz, falar do postal natalício de Massie, mesmo que seja para o condenar, seria entrar no seu jogo bárbaro, ceder à provocação.
Difícil será, todavia, passar em claro uma coisa como esta, ou outra que ocorreu há pouco, quando um congressista do Arizona, Paul Gosar, publicitou um vídeo de animação em que surgia a matar (sim, a matar) uma colega deputada, a democrata Alejandra Ocasio-Cortez, e a atacar com violência o presidente da América, Joseph Robinette “Joe” Biden. Para onde vai esta América?
Para agravar as coisas, o postal belicista de Massie não foi caso único, longe disso. Um xerife de El Paso, no Colorado, está debaixo de fogo por, há poucos dias, ter posto a circular na Internet uma fotografia em que se vê um homem vestido de Pai Natal a solicitar alegremente, na esquadra da sua jurisdição, uma licença de uso e porte de arma. Uma vez mais, criticaram a insensibilidade do gesto e do timing, já que tudo isto foi divulgado escassas horas depois do massacre do Michigan, o mais mortífero deste ano em escolas americanas. Em resposta, o xerife alegou que pretendia apenas publicitar a eficiência dos seus serviços, que só este ano já concederam 49 750 licenças para uso de armas ou, melhor dito, para que as armas possam ser transportadas de forma escondida e dissimulada (concealed carry), fora de olhares alheios, ao contrário do que sucede com as polícias, que geralmente são obrigadas a ter o armamento à vista, para segurança de todos. Uma arma escondida na manga é sempre, e naturalmente, muito mais perigosa.
Estima-se que actualmente existam nos EUA qualquer coisa como 10 a 12 milhões de AR-15. Perguntais, e bem, o que é uma AR-15. É uma espingarda com características de combate concebida pela empresa Armalite na década de 1950 e destinada a uso militar, cuja aquisição por civis esteve banida durante dez anos pelo Federal Assault Weapons Ban, decretado em 1994 pelo presidente Clinton, mas que foi retomada em 2004, quando aquela lei expirou e os esforços para a reaprovar foram rejeitados em 2013 pelo voto unânime dos senadores republicanos (e de 15 democratas). A National Rifle Association, o lóbi dos fabricantes de armas, chama-lhe “a espingarda da América”, tal o seu poder devastador e letal. À excepção do massacre de Orlando, em 2016 (49 mortos), ela foi usada em 10 dos 11 maiores morticínios da última década: Parkland, 2018 (17 mortos); Las Vegas, 2017 (60 mortos); Aurora, 2012 (12 mortos); Sandy Hook, 2012 (26 mortos); Waffle House (4 mortos); San Bernardino, 2015 (14 mortos); Midland, 2019 (7 mortos); Poway, 2019 (1 morto, 3 feridos graves); Sutherland, 2017 (26 mortos); Pittsburgh, 2018 (11 mortos).
Segundo uma notícia recente do The New York Times, a pandemia não fez cessar os homicídios à bala, que continuaram a um ritmo impressionante, apenas menos visível. Para termos uma ideia de alguns massacres deste ano (por “massacre” entende-se a morte de quatro ou mais pessoas): 9 de Janeiro, Evantson, Illinois, 5 mortos, incluindo uma rapariga de 15 anos; 24 de Janeiro, Indianapolis, 5 mortos, entre os quais uma mulher grávida; 2 de Fevereiro, Muskogee, Oklahoma, 5 crianças mortas e um adulto; 13 de Março, Indianapolis, 4 mortos, incluindo uma criança de quatro anos; 16 de Março, Atlanta, 8 mortos; 22 de Março, Boulder, Colorado, 10 mortos; 28 de Março, Essex, 5 mortos; 31 de Março, Orange, Califórnia, 4 mortos, incluindo uma criança de nove anos; 3 de Abril, Allen, Texas, 6 mortos; 7 de Abril, Rock Hill, Southern California, 7 mortos; 15 de Abril, Indianapolis, 9 mortos; 28 de Abril, Boone, North Carolina, 5 mortos; 9 de Maio, Colorado Springs, 7 mortos; 26 de Maio, San José, Califórnia, 9 mortos; 15 de Junho, Chicago, 5 mortos; 20 de Julho, Jacksonville, Texas, 4 mortos; 25 de Julho, Wasco, Califórnia, 5 mortos; 5 de Setembro, Lakeland, Flórida, 4 mortos, entre os quais uma criança; 5 de Setembro, Houston, Texas, 5 mortos, entre os quais duas crianças; 12 de Setembro, St. Paul, Minnesota, 4 mortos; 25 de Setembro, Athens, Tennessee, 4 mortos; 20 de Outubro, Farewell, Michigan, 4 mortos; 14 de Novembro, Tucson, Arizona, 4 mortos; 28 de Novembro, Lancaster, Califórnia, um pai de 29 anos matou os quatro filhos (de 1, 2, 7 e 11 anos) e a sogra; 30 de Novembro, Detroit, Michigan, 4 mortos numa escola.
Uma compilação exaustiva, disponível na Wikipédia, refere que, até ao final de Novembro deste ano, ocorreram na América 638 episódios de tiroteios em massa (mass shootings), com 482 vítimas mortais e 1927 feridos graves.
Estes são apenas os homicídios em massa, mas a realidade é mais vasta e cruel. Com base nos dados oficiais reunidos pelo Center for Disease Control (CDC), estima-se que, entre 2015 e 2019, foram alvejadas a tiro na América, por ano, 115 551 pessoas, provocando 38 826 mortos. Ou seja, todos os anos quase 40 mil pessoas são mortas a tiro nos EUA. E, a cada ano que passa, são mortas a tiro 1663 crianças. Diariamente, são alvejados a tiro 316 adultos e 22 crianças e jovens até 17 anos. É muita gente junta.
Mais alguns números:
− a cada 16 horas, uma mulher norte-americana é abatida mortalmente a tiro pelo seu actual ou ex-companheiro;
− diariamente, oito crianças ou jovens são alvejados por acidente em tiroteios familiares;
– calcula-se que ter uma arma de fogo em casa aumenta o risco de morte por suicídio em 300%;
− 90% das armas de fogo usadas em crimes são comercializadas por apenas 5% dos vendedores;
− estima-se que a violência armada custe à economia americana, por ano, 229 mil milhões de dólares;
− os norte-americanos matam-se uns aos outros com armas de fogo 25 mais vezes do que a média dos outros países desenvolvidos;
− os norte-americanos constituem 4,4% da população mundial, mas detêm 46% das armas de fogo do planeta: 393 milhões de armas na posse de civis, 100 vezes mais do que todas as armas nas mãos dos militares e 400 vezes mais do que as das forças policiais e de segurança.
− nos lares da América, existe um arsenal bélico superior ao de todos os outros 25 países mais armados do mundo.
Os números dizem muito, muitíssimo, mas não contam a história toda. No seu tratado clássico de sociologia, o cientista social britânico Anthony Giddens refere um dado singelo, mas que dá que pensar: a posse de armas de fogo, por si só, não é razão de violência nem motivo de tanta morte. A pacata Suíça tem uma enraizada “cultura de armas”, sendo a sua legislação na matéria das mais liberais do mundo (a escassa regulação que existe, imposta por Schengen, diz sobretudo respeito à aquisição de armamento, não à sua posse, sendo esta última quase livre). Além de a defesa do país ser assente, em larga medida, nas milícias de cidadãos, que cumprem serviço militar obrigatório, deveres anuais de treino e têm as armas guardadas em suas casas, vários cantões helvéticos, com destaque para os alpinos Grisons e Valais, têm uma longa tradição de caça e de prática de tiro ao alvo. Anualmente, a Suíça organiza a maior competição de tiro ao alvo do mundo, que reúne uns 200 mil participantes, e a sua federação de tiro é a segunda maior do mundo em número de clubes. A partir dos 10 anos, as crianças podem disparar armas e, desde os 15, podem frequentar cursos de tiro nas várias organizações juvenis da modalidade existentes no país. Estima-se que na Suíça existam 3 milhões e 400 mil armas de fogo, o que dá uma média de quase 41 armas por cada 100 habitantes, com 28% dos lares a possuírem armamento. Apesar deste arsenal, a Suíça tem uma das taxas de homicídio mais baixas do planeta, 0.50 por 100 mil habitantes. Em 2016, por exemplo, o país registou apenas 16 homicídios com armas de fogo e a esmagadora maioria das mortes relacionadas com tais armas são suicídios (21,5% dos suicídios são perpetrados com pistolas ou espingardas).
Em face de tudo isto, Anthony Giddens conclui, e parece que bem, que o problema dos morticínios na América não está, ou não está apenas, na posse de armas de fogo. Significa isto que se deve manter o statu quo, como pretendem os republicanos e os lóbis das armas? De modo algum. O que o confronto com a Suíça demonstra, pelo contrário, é que a sociedade e a cultura norte-americanas não sabem conviver com armas de fogo. Estas, por si só, não são a causa directa de tanta morte junta, mas são instrumentos que facilitam, que propiciam e que potenciam as estatísticas do horror. A comparação helvética não é um argumento favorável à liberalização do comércio e da posse de armas; é, isso sim, uma demonstração inequívoca de que a América enfrenta um dilema terrível: ou tem a coragem de mudar radicalmente de rumo ou continuará no caminho da devastação, de uma guerra civil infernal que faz todos os anos milhares de mortos e custa à economia biliões de dólares. Para não falar, claro está, da imagem dos EUA perante o mundo, que olha perplexo e pergunta: como é que uma das nações mais avançadas do planeta, com universidades de topo e uma ciência de vanguarda, insiste e persiste nesta estupidez cruel?
Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia
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