Views: 0
PREFÁCIO – – A MITOLOGIA DO CRONISTA
A crónica é dos géneros mais difíceis, mas dos mais estimulantes.
Há quem diga que está na fronteira entre o jornalismo e a literatura, mas passou por muitas transformações desde o seu aparecimento no início da era cristã.
Popularizou-se em Portugal com os relatos apaixonados do início da expansão marítima e transformou-se num misto de narração e ficção com as célebres “Crónicas das Índias.”
O género autonomizou-se através do jornalismo, quando surge pela primeira vez na imprensa escrita, já lá vão mais de 200 anos, nascendo então cronistas celebrizados que iam da cobertura da frente das guerras até ao mais invulgar acontecimento mundano.
A crónica, hoje, não possui tipologia própria, variando consoante a inspiração e talento do respetivo autor, deixando de se assemelhar a história para passar a narrativa do tempo presente.
Do latim Chronica e do grego Kronos (tempo), talvez esteja hoje mais atraente, na forma e no tempo, do que nos anos ancestrais em que ainda nem havia o género romance.
Os jornalistas veem-se “gregos” para assimilar a crónica como género fluido nesta nova moda trazida pelo mundo digital de que “tudo é comunicação.”
Chrys Chrystello, como jornalista sénior que é, certamente se terá apercebido do poder da crónica como narrativa do tempo, porque passou a incorporá-la na sua escrita regular com enorme desenvoltura, como se poderá constatar neste volume quase diarístico (outra transformação da crónica), que vai de 2005 a 2020.
Chrystello usa bem os conceitos do género e utiliza-os melhor quando escolhe como espaço este ‘microblogging‘ no meio do Atlântico a que ele chama mitologicamente de Éden.
O autor consegue transformar a centralidade insular num misto de ansiedade e identidade redentora, sempre com espírito crítico, provavelmente por ter sentido na pele, muito antes de nós, as angústias do futuro de um povo e das suas ilhas, durante a sua longa vivência em Timor.
Aliás, Timor e Açores passaram a ser os “colossos utópicos” na comunicação de Chrys Chrystello, aquilo a que ele chama a si próprio “ilhanizado.”
“Perdi sotaques, mas não malbaratei as ilhas-filhas. Trago-as comigo, colar multifacetado de vivências dos mundos e culturas distantes. Primeiro em Portugal, ilhota perdida da Europa no Estado Novo, seguida de um capítulo naufragado da História Trágico-Marítima camoniana, nas ilhas de Timor, de Bali, na então (pen)ínsula de Macau (fechada da China pelas Portas do Cerco), na imensa ilha-continente Austrália, e em Bragança, ilhoa esquecida que é o nordeste transmontano.” (pg. 236 da presente edição).
É este mundo – desgastante e deslumbrante (“alumbramento”) – que vai moldando as “Crónicas do Éden,” muitas delas publicadas no “Diário dos Açores” que dirijo, sendo um privilégio ser o primeiro leitor e simples paginador.
Nada como um bom observador que vem do outro lado do mundo – e que mundo! Que se deixa “ilhanizar” entre nós, mas mantém o espírito aberto e aplicado do jornalista-cronista, que não se deixa influenciar pelos “poderes mágicos” do burgo regional, certamente muito diferentes dos que se veem na sociedade aborígene australiana.
Chrystello é o nosso Bill Bryson com as suas “Crónicas de uma pequena ilha,” com a diferença de que procura constantemente uma “renovada Atlântida” cada vez mais mítica e muito perto do universo da “Ilha Grande Fechada” do seu e nosso querido amigo Daniel de Sá.
O espírito inquieto do autor, refletido nas crónicas de crítica social e política da urbe açórica, é uma procura permanente do Ideal que já vem do tempo de Antero, o democrata e republicano “daquela república que por ora não existe senão como ideia e aspiração,” espicaçando a nossa ancestral morrinha insular, conformados com o presente e pouco preocupados com o futuro.
Vale a pena fazer esta viagem guiada (“uma circum-navegação“), que o Chrys nos presenteia neste livro, numa incursão em defesa da justiça social, da língua, da nossa literatura, dos nossos poetas e escritores, da nossa história, do presente e do futuro, mesmo que sob uma perspetiva crítica e ao mesmo tempo apaixonada destas ilhas.
Não será por ironia que o cronista as chama de Éden.
Ou será?
Pico da Pedra, outubro 2020