João Paes, in memoriam

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João Paes, in memoriam
Foi com tristeza que me apercebi da morte de João Paes, pessoa cujo contributo para a cultura portuguesa no século XX muito me tocou pessoalmente, na segunda metade dos anos 70 em que foi director do Teatro Nacional de São Carlos (até 1981).
Não posso dizer que o tenha conhecido bem; mas sempre apreciei o seu trato impecável para comigo e nunca vi propriamente sintomas daquela personalidade que outras pessoas (que o conheciam melhor) apelidavam de «difícil».
Era um homem cultíssimo, cuja memória musical o tornava um interlocutor fascinante para todos os temas que tivessem a ver com com a história da interpretação musical no século XX. Pois não havia nome sonante no mundo da música que ele não conhecesse; e ele podia gabar-se de ter assistido a récitas de ópera e a concertos que só o adjectivo «mítico» conseguiria descrever.
Como referi: nunca conheci bem João Paes, embora o tenha conhecido toda a minha vida (pela razão muito banal de a mulher dele ter sido colega de turma da minha mãe na antiga «École Française» de Lisboa, depois Lycée Charles Lepierre). Só tive uma conversa mais longa com ele, que ocorreu na altura em que ele assumiu a direcção da Rádio Cultura e me convocou para uma reunião, com o intuito algo ingénuo de me levar a desistir da carreira universitária para trabalhar com ele na RDP. Não pude aceitar convite tão irrealista, mas aproveitei a ocasião para lhe dizer o quanto me sentia em dívida para com ele, pelos anos (que eu considero a minha Idade de Ouro da ópera) em que ele foi director do São Carlos.
Na verdade, a visão internacional de fazer representar e cantar, em Lisboa, o grande repertório operático levou a que, nas temporadas a que assisti na íntegra (desde 1976 a 1981), eu e tantos outros tenhamos tido a oportunidade de contactar directamente com as grandes óperas do repertório italiano, alemão e (em menor grau) francês.
Quando eu penso nas óperas de Verdi que ficaram na minha memória da era João Paes (Aida, Ballo, Don Carlo, Trovatore, Forza, Boccanegra, Traviata, Otello, Falstaff, Rigoletto, Macbeth), nas de Wagner (Anel do Nibelungo em duas encenações, Parsifal, Tristan, Meistersinger, Lohengrin, Holländer), nas de Richard Strauss (Salome, Elektra, Rosenkavalier, Ariadne), nas de Puccini (Bohème, Tosca, Butterfly), nas de Mozart (Entführung, Don Giovanni, Figaro, Così) e no Fidelio de Beethoven: tudo isto foram experiências que me marcaram para sempre e, acima de tudo, me educaram.
Porque a era João Paes foi uma educação para todos os jovens que, como eu, estavam a começar o seu trajecto de aquisição de uma cultura musical.
Olho para essa época com saudosismo, não nego: não só pelo bom gosto do director do Teatro e pelo seu cuidado em educar as pessoas com o grande repertório (dando também a ouvir obras mais modernas), como por três outras razões: (1) não havia telemóveis no teatro; (2) as encenações ainda respeitavam a estética musical da obra; (3) o público português tinha a paciência de ficar sentado durante cinco horas a ouvir os Meistersinger de Wagner em alemão, sem legendas.
Compreendo que hoje tenha tudo de ser diferente (e já tomei há muitos anos a opção de não ir à ópera). Mas fico grato a João Paes por me ter proporcionado, nos anos marcantes da minha formação, uma vivência da ópera que ficará comigo até ao dia em que será a minha vez de morrer.
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