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Na lotaria das nações, o Haiti tirou o bilhete mais amaldiçoado; mas o Afeganistão deve ter ficado com o seguinte. Se o Haiti ganha o título pela conjuntura geológica que o rodeia, e expõe a todo o tipo de desastres naturais, o território afegão reúne em si todo um conjunto de tribos e povos que se odeiam mutuamente e para cumular tudo, localiza-se a meio caminho de tudo: Ocidente e Oriente, Império Russo e Império Britânico, União Soviética e Bloco Ocidental, petróleo e ganância. Para se entender bem o que se passou nos últimos dias, é preciso recuar para lá do século XX. Bem para lá. Pelas suas características montanhosas e posição geográfica, é praticamente impossível falar de um grande império asiático que não o tenho envolvido: Macedónico, Partio, Maurya, Mongol. Juntando a isso ser uma zona fundamental nas Rotas da Seda, cobiçar o Afeganistão sempre foi natural. Foi no século XIX, no entanto, ao tornar-se no tampão entre a Índia Britânica e a Rússia que se foi tornando num joguete ocidental, nem sempre com bons resultados. O chamado Grande Jogo, um conjunto de manobras diplomáticas e militares na Ásia Central, colocou-o como palco central de maquinações que tinham como objectivo a posse da península indiana. A Grã-Bretanha, durante muito tempo, manteve uma influência perniciosa na zona até ao final da 1ª Guerra Mundial, quando um Afeganistão unificado se tornou independente no reino de Amanullah II. O rei tentou abrir o país à modernidade, estabelecendo relações diplomáticas com as grandes potências, concedendo vários direitos às mulheres, mas tal afrontou as ancestrais tribos afegãs, que por questões religiosas ou puramente conservadoras de machismo se recusavam a reconhecer isto. O rei foi assassinado, seguiram-se anos de guerra civil, mas ficam com uma ideia de um país ingovernável por natureza, ainda mais quando ingerem e tentam puxá-lo para o lado errado. É aqui que entram a URSS e os EUA. Na Guerra Fria e sucessiva luta entre blocos, os Soviéticos tentaram influenciar um país com apoios financeiros. Os EUA também; e assim, como tantas vezes na sua História e jogando com dois lados, os afegãos lucravam numa sociedade relativamente plural, pobre, mas pacífica. Em 1978, a URSS apoiou um golpe de estado no país que pôs fim à monarquia e visou instalar um regime comunista; e a partir daqui, foi o fim da picada. A opressão e insistência em nacionalizar a terra entre espaços tribais, perseguindo também as comunidades religiosas, levou à aparição de um grupo de zelotas combatentes simplórios que hoje conhecemos por Talibans. Extensos em vontade, reduzidos em armas, o grupo viria a receber o apoio dos EUA, que não queriam o aparecimento de um regime comunista nesta zona por város motivos, mas o principal era a proximidade do país de vastos campos petrolíferos a Oeste. Acresce também um conjunto de manobras diplomáticas internas dentro da Casa Branca que levaram ao poder um conjunto de políticos, nomeadamente o conselheiro de Segurança Nacional Zbigniew Brzezinski, profundamente pró-confito, anti-comunistas e pró-sauditas. O Afeganistão tinha também um clima quente, parecido com o da Indochina, em certas regiões. A CIA, portanto, transferiu os campos de ópio que cultivava no Vietname e no Cambodja para o Afeganistão, acrescentando mais um “bem” para desestabilizar a zona. Portanto, ajudou também ao treino destes Mujahedines que, quando a URSS invadiu o Afeganistão sob o pretexto de reforçar o apoio ao regime que estava no poder, se mergulhou num pântano que contribuiria para a sua queda. Nessa altura, como agora, os EUA lavaram as mãos da sua responsabilidade com os mujahedines e deixaram esta praga medieval à solta, o que culminou com o que se passou hoje – e pelo meio lhes explodiu na cara com o que se passou no 11 de Setembro (mais a dizer sobre isto, não neste textinho). Desde então, de guerra civil em guerra civil passando por nova invasão desestabilizadora norte-americana, o Afeganistão é isto: uma roda viva de ganância, estupidez e e atavismo. Uma população que não merece o que a História lhe reservou e que há décadas não sabe o que é viver de facto.
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