CABO VERDE INUNDAÇÕES NA PRAIA

Views: 0

Flashes

Sobre a calamidade na cidade da Praia, nossa mui amada Criatura, agora mercê da forte chuvada nos últimos dias, impõe-se a serenidade de ação emergencial, assim como a generosidade social da ação solidária. É tempo de todos apoiarmos o que deve e o que pode ser feito para controlar os danos. A par disso, não podemos perder de vista que as veias abertas são a recorrente e histórica desatenção estrutural à cidade da Praia, a favor da cosmética elitista, da vã aparência e do switch-off poético da “outra terra na nossa terra” vaticinado por Aguinaldo Fonseca. Desatenção que, poesia à parte, não beneficiou a Capital, nem o País em geral, diga-se, mergulhado desde sempre no baixo nível de saneamento urbano e ambiental, na periclitante insegurança pública e na flagrante desigualdade. Desatenção esta que, herdada do tempo colonial, levou à perda acentuada do direito efetivo ao bem-estar social e à qualidade de vida.
*
Culpas? Dos (re)Criadores, naturalmente. Mas não as procuremos circunstancial e pontualmente, que os buracos estão estrutural e historicamente mais em baixo (e o “Ka nhos djobe-m di pa baxu”?), algo que apela à nossa razão coletiva redentora (e não àquela redutora). Esta Praia, Criatura descontínua e desproporcionada, tem literalmente seus 20% na Casa Grande e 80% na Senzala. Esta Praia, desde o antanho em insalubridade estrutural, não aguenta uma forte chuvada, nem resiste a uma epidemia. E o que lhe fazia falta para ser cidade saudável, criativa e educativa, tecnológica e ecologicamente equilibrada, como afinal todos desejam? Se calhar um pacto social novo e um reajustamento efetivo na maneira de sermos e de estarmos com a Cidade…aliás, consciência de “À Cidade da Praia”, com que o poeta Jorge Carlos Fonseca nos recordou: “Quem, até hoje, te escreveu poema que não fosse/ chato, desolado ou ranhoso?!” É possível tudo fazer a partir da poesia afinal.
*
Estarão lembrados da extrapolação do matemático José Augusto Fernandes na qual Cabo Verde poderia vir a registar quase 39 mil casos e cerca de 430 mortes? Muita gente não levou aquilo a sério, alguma gente até fez maldosa especulação, mas nada havia ali de ficção, nem de absurdo. Foi apuração em março e num quadro de quarentena, num quadro de medidas emergenciais. Inferisse num cenário de relaxamento de tais medidas, a situação seria mais agravada – 165.505 de pessoas infectadas e 1.821 mortes -, um filme de terror. Estão disso lembrados? Na altura de tal projeção o país só contava uma morte, a do turista inglês, aparentemente o primeiro a chegar com a doença e seis casos positivos em situação estável na ilha da Boa Vista. A verdade é que a pandemia se alastra pelo mundo e globalmente vai haver mais contágios e mais mortes. Não seremos a exceção!
*
Mudando a agulha, mas mantendo o disco e a música. Da poesia gostava Amílcar Cabral, conectado desde muito jovem aos poetas que lhe eram contemporâneos e de admiração, como Aguinaldo Fonseca e António Nunes. De Fonseca, impressionara-lhe a imagética da “outra terra na nossa terra” e a africanidade na linha do seu horizonte criativo; de Nunes a antevisão do amanhã utópico e a força do “vivificando a vida”. Tinha também presente o senso libertário de Daniel Filipe, de “Invenção do Amor” e do avejão lírico e modernista de António Pedro. Ele próprio poeta, Cabral entendeu que era possível tudo fazer a partir da poesia, educação e cultura. Culto, pôs eixo da libertação na própria Cultura, e todos preconizou aprender, aprender sempre. Sem alienação, aprender com tudo e com todos. Aprender com a poesia a historicamente existirmos numa espécie de “suicídio” do nosso egoísmo classista.
*
Permitam-me que (nem tudo, mas uma parte) seja poema. Antes que a morte, como uma ave noturna, paire em voo rasante sobre a vida. Com a aflição de quem, não tendo poiso certo, agoure as nossas bandas. O poema aglutina todo o existencial e tudo (do ínfimo ao espectral histórico) que nele habita. E o oscilante pêndulo que é o imponderável a dar espessura a cada ato em que somos sujeitos. Se acham estranho, experimentem poesia. Um poema que voe com leveza de pluma, pairando sobe a vida. Assim, com a despudorada intimidade entre o Criador e a Criatura…