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Através de Jorge Buescu:
SOBRE PICOS, PLANALTOS, E O VÍRUS DO FACILITISMO
Vou ser um pouco repetitivo, mas apenas porque as situações são recorrentes. Os 3,7% de variação diária nos casos confirmados não representam nada de significativo, pelas duas razões do costume: (1) um ponto não tem significado como tendência; (2) baseiam-se em menos testes (5943) do que ontem (6736); e menos testes realizados implicam menos casos positivos detectados. Na verdade o número absoluto de novos casos subiu, de 515 para 598; e a densidade de casos positivos subiu concomitantemente, de 1 em 15 para 1 em 10.
Portanto não há nenhuma razão para especial optimismo nos dados de hoje. Continuamos em linha com a evolução dos últimos 10 dias, com uma taxa de crescimento diário média de casos confirmados em torno de 6%. Estamos apenas a manter a tendência. Este facto é particularmente visível no nosso Picómetro, que mede em cada dia a nossa distância ao pico dos casos activos: hoje ele aumentou um pouco, de 447 para 553. Recordo que o pico de casos activos será atingido quando o Picómetro chegar a zero. Isto significa que, de ontem para hoje, esse pico se afastou de nós. Não há razão para alarme, mas também não há razão para optimismos. Cabeça fria: isto é uma maratona e não um sprint.
A análise dos casos confirmados tem muito ruído, como já deve ser claríssimo para quem me segue. Os indicadores mais fiáveis são os internamentos hospitalares, e sobretudo os internamento UCI e óbitos.
Estas duas curvas estão a ter comportamentos muito diferentes. Os UCIs baixaram hoje de novo (de 233 para 228), e essencialmente têm-se mantido essencialmente estáveis desde a passagem pelo ponto de inflexão, de 31 de Março para 1 de Abril (ver gráfico). Isto são muito boas notícias: os UCI são o elo mais fraco do sistema de saúde, e o ponto por onde eles quebrarão no caso de isso acontecer. Ter este número estável é muito bom sinal.
Chamo no entanto a atenção para o seguinte: a distribuição geográfica da doença é tudo menos uniforme. Neste momento mais de metade dos casos estão na região Norte, com grande concentração na zona do Grande Porto, como é visível no vídeo do Dinis Fernandes; e essa tendência tem acelerado nos últimos 4 dias. Pode assim acontecer que o total nacional se comporte satisfatoriamente mas localmente, na região do Norte, haja hospitais a atingir muito rapidamente o ponto de saturação. Não é a mesma coisa, por hipótese, haver 2 casos no Alentejo ou 100 no Porto. Seria essencial a DGS disponibilizar os dados de doentes UCI por região e por concelho, para conseguirmos ter noção de que podem existir situações críticas, e onde, antes que elas ocorram. Quem tiver ouvidos para ouvir, ouça; e que transmita a quem de direito.
Os óbitos continuam a crescer linearmente, não se registando qualquer inflexão. Sabendo que a curva dos óbitos tem um atraso de 10 a 14 dias sobre a dos internamentos UCI, e que vamos no dia 12 da inflexão nos UCI, seria por esta altura que se deveria começar a sentir esse efeito nos óbitos. No entanto, ainda não se nota nada. Vamos esperar mais dois ou três dias.
Não queria, mas vou ter de regressar à questão do “pico” e do “planalto”, porque ontem a Ministra da Saúde teve declarações particularmente infelizes porque podem induzir em erro quem as ouviu, afirmando que “estamos no planalto da curva epidemiológica”. Estas declarações, vindas depois da afirmação que circulou no início da semana de que “o pico podia até já ter passado”, tiveram naturalmente enorme repercussão na comunicação social. Vou tentar explicar uma vez mais por que razão elas são não apenas incorrectas como acima de tudo perigosas, contribuindo para uma falsa sensação de segurança e para a tendência para pensarmos que “o jogo está ganho” – quando ele ainda nem sequer chegou a meio.
O número de “casos confirmados” no Boletim da DGS é o total acumulado C(t) de casos positivos desde 1 de Janeiro. Os novos casos reportados num dia, NC(t), são simplesmente a diferença NC(t) = C(t)-C(t-1), do acumulado entre um dia e o anterior. Por exemplo, hoje há 16585 casos acumulados; ontem havia 15987; assim, os novos casos de hoje são NC= 598, que é o valor que tenho no início do post. Em termos matemáticos, a curva NC(t) é a derivada de C(t), sendo pois esta última é o integral de NC(t). Se isto não lhe diz nada, não se preocupe.
É fácil perceber que a curva C(t) não tem pico, pois sendo cumulativa é monótona crescente. Quando a Ministra fala em “pico” e “planalto”, está a referir-se à curva NC(t).
Vou agora explicar por que razão não é esta a curva relevante em termos epidemiológicos, mas sim a curva dos infectados activos I(t), muitas vezes chamada dos infecciosos ou contagiosos. É tudo a mesma coisa. Podemos pensar nos seguintes termos: I são os Infecciosos, isto é, são, em cada instante, as pessoas que estão a transmitir a infecção. Já agora, nos modelos SIR e seus derivados, este I é precisamente a variável de saída dos modelos: o “I” em “SIR” são os infectados activos.
Imagine o leitor que vai ao supermercado. É possível que se cruze com uma pessoa contagiada (calculei ontem que cerca de uma pessoa em 30 em Portugal é, hoje, contagiosa). Agora, pense no seguinte: Tem alguma relevância que esta pessoa, estando infecciosa, tenha contraído a infecção de ontem para hoje, estando portanto no conjunto NC(t)? Não! O que é importante é que está infecciosa; é completamente irrelevante se o está há 1 ou 10 dias. O relevante é que pertence ao conjunto I(t); é por isso que está contagiosa.
A curva I(t) dos infectados activos, que é a curva epidemiológica essencial, tem um aspecto semelhante a NC(t) mas – questão crucial – com um atraso que pode ser grande. E é fácil de perceber porquê. Em cada dia os novos infectados activos são a diferença entre os novos casos NC(t) e os casos que deixam de o ser, seja por recuperação NR(t) ou por óbito NO(t). Nós fazemos essas contas no nosso Picómetro. Por exemplo, no dia de hoje tivemos 598 novos casos; 34 novos óbitos; e 11 novos recuperados. Obtemos assim um total de novos activos: 598-(34+11)= 553.
O pico dos casos activos, pois é esse que importa, será atingido quando a entrada de novos casos for compensada pela saída de casos que se tornaram inactivos (recuperados mais mortos). Só quando NC – (NO+NR) for zero é que estaremos no pico do contágio. Esse ponto é instável, sendo de esperar uma oscilação entre positivo e negativo durante uns dias – será, aí sim, o famoso “planalto”. E a partir de certa altura começará a descer.
Mas atenção: o pico dos activos é a altura mais perigosa da epidemia! Aquilo que nós vemos é que os novos casos estão a crescer em média 6% ao dia, a uma taxa de crescimento estável. A Ministra chama a isto “planalto”. Isto é muito enganador, uma vez que se trata de um planalto, mas para a taxa de crescimento, não para o número de infecciosos I(t) – que é a variável relevante.
Talvez seja mais fácil compreender a situação com exemplos. Imagine o leitor que vai de carro, a subir uma ladeira com inclinação 6%. Diria que está num planalto? Em caso afirmativo, o que aconteceria se deixasse o carro em ponto morto? E se estivesse parado e destravasse o carro? Ficaria imóvel, como aconteceria num planalto?
Outro exemplo. Suponha que a taxa de inflação (que mede o crescimento de preços no consumidor) é 6%. Imagine agora que o Ministro da Economia vai à TV dizer que “os preços estão num planalto”. O que pensaria nesta situação?
Foi isto o que a Ministra da Saúde fez ontem com os números da epidemia. Fala num planalto para a taxa de crescimento de casos, quando aquilo que é relevante tanto do ponto de vista teórico como prático é o pico, ou planalto, para os casos activos. É isso o que define o pico do contágio.
Nada tenho contra a Ministra, e imagino que gerir esta situação seja extremamente difícil. Devo dizer, aliás, que sou da opinião que os aspectos macro da crise (fecho das escolas, medidas de contenção rápidas e eficazes, união da classe política, cancelamento de aulas presenciais) têm sido geridos de forma muito competente pelo Governo. Mas o meu compromisso como cidadão é para com a Verdade. E a verdade é que continuamos a escalar a montanha do contágio em direcção ao pico dos infectados activos, e a situação é todos os dias mais perigosa em termos de contágio. O pico desta curva ainda está para vir e ocorrerá, ao que tudo hoje indica, na segunda quinzena de Abril.
Tudo isto é extremamente importante porque vejo claramente, como tantos leitores, que todas estas declarações começam a passar para a opinião pública uma mensagem de desmobilização e descontracção. E isso é extremamente perigoso: o afrouxamento de comportamentos pode ainda deitar tudo a perder. Nada está garantido!
Para dar um termo de comparação, muito bem sugerido pelo leitor Luis Cavaleiro Madeira, mostro a curva dos infectados activos em Portugal e na Áustria, país onde se começa agora a debater a possibilidade de levantar as medidas de contenção. Neles se vê bem o que é passar o pico do contágio – ou não. Gráficos livremente acessíveis em https://www.worldometers.info/coronavirus/#countries
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Não podemos deixar instalar-se o vírus do facilitismo!
Jorge Buescu
12/4/2020
https://www.facebook.com/jorge.bu…/videos/2947239638656353/…
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