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O paradoxo de Zenão
Zenão foi uma figura menor da Antiguidade. O pouco que sabemos dele vem de um livro perdido de Platão – Parménides – de que apenas se conhecem excertos em segunda mão. E no entanto, qualquer pessoa medianamente culta já ouviu falar de Zenão – que mais não seja pelo paradoxo que traz o seu nome. A história é simples e é complicada: conta-se em meia dúzia de palavras, mas leva-se uma eternidade a entendê-la.
Aquiles, como jovem guerreiro muito ágil e bem treinado, era um corredor de grande velocidade; assim tipo Usain Bolt – o velocista jamaicano que mui modestamente se referiu a si próprio dizendo que “há sempre limites, mas eu não conheço os meus”. Pois bem, um dia, sabe-se lá quem, alguém desafiou Aquiles a disputar uma corrida de velocidade com uma tartaruga. O rapaz aceitou mas, generosamente fanfarrão, concedeu à sua adversária uma vantagem de dez metros. Dado o sinal de partida, ambos fizeram o seu melhor: a tartaruga meteu lentamente a sua primeira, Aquiles guindou-se logo para a quinta – e num abrir e fechar de olhos chegou onde a tartaruga era suposto estar; só que ela, na sua lentidão, já dera umas passadas em frente. Ou seja, ia adiante. Aquiles calculou a distância, e num só passo chegou onde a tartaruga devia estar – mas ela já se adiantara um poucochinho. Mais uma vez, e o mesmo resultado – e, quando mal se precatou, quando já ia a passar a meta, Aquiles verificou que, no seu devagar devagarinho, a tartaruga já o tinha feito.
Zenão viveu mais de dois mil anos antes de Immanuel Kant e de Einstein, e portanto – ou Platão por ele – nunca poderia perceber que a relação entre tempo e espaço não é bem assim. Mas para a moral da história tanto faz: uma tartaruga lenta pôde ganhar uma corrida a um tipo veloz como Aquiles; tal como eu, mal comparado, ainda posso bater a perna ao Bolt. É tudo, como se diz na gíria dos futebóis, uma questão de atitude.
E já que estamos nos mal comparados, vem-me à cabeça esta história dos rankings – ou melhor, em português, da seriação – das escolas portuguesas com base nos resultados dos exames nacionais. Numa seriação em que as escolas açorianas aparecem, quase sempre, no último lugar: enquanto nesta corrida de malucos os aquiles são escolas privadas – que escolhem os seus alunos e, mercê das propinas que cobram, apenas recebem alunos com enquadramento sócio-económico favorável ou muito favorável –, ou escolas públicas de meios urbanos de classe média-alta – como a famosa Infanta D. Maria, de Coimbra –, as tartarugas são escolas açorianas, como a de Rabo de Peixe ou a do Corvo. O que certamente levará os machados deste mundo a brafamar, botando os bofes pela boca fora, que isto se deve, nem mais, às más políticas para a educação que têm vindo a ser praticadas nos Açores nas últimas décadas.
Como açoriano atento, sinto-me desconfortável com os resultados dos nossos alunos nas nossas escolas. Mas, como responsável governamental, estou-me nas tintas para os desvarios que tenho lido e ouvido acerca dos resultados que, sem qualquer tratamento científico que considere as muitas variáveis que fazem os resultados de exame dos alunos das nossas escolas, e que misturam rápidos aquiles com lentas tartarugas, marcam a testa das nossas crianças e adolescentes com um ferro em brasa onde se lê a palavra “estúpido”. Como o “in signum”, origem da palavra “ensino”, marcava a ferro e fogo, na pele, com o nome do seu proprietário, os escravos da antiga Roma.
E desconhecem que Rabo de Peixe e Corvo não são Coimbra.
Mesmo sabendo que Zenão não tinha – nem poderia ter – razão, mas também sabendo que ele raciocinava com os instrumentos intelectuais disponíveis na sua época, apetece-me afinar pelo seu diapasão: mesmo com resultados negativos, qualquer pequenino passo dado pelos nossos alunos dos meios mais desfavorecidos – por razões económicas, demográficas ou geográficas – vale mais, para mim, do que as garbosas corridas dos meninos a quem nada falta. Porque, tanto como para estes, a escola pública também é para aqueles. O que é preciso é dar-lhes, à partida do seu percurso escolar, a vantagem que o bom senso e o conhecimento da realidade entender como justo conceder-lhes.
E no entanto, parece que em dois mil anos de história ainda não aprendemos a lição.
(no diDOMINGO, de Angra do Heroísmo