Quando se confunde o passado com o presente numa aula de Português

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Quando se confunde o passado com o presente
Por estes dias, numa aula de Português, os alunos, ao serem questionados sobre se o sujeito lírico de uma cantiga trovadoresca era feminino ou masculino, mantiveram-se em silêncio. Perguntei se não era óbvio, pois se um verso exclamava “Se vistes o meu amigo!”…
Uma aluna então interveio: “Como é que a professora sabe?”
Percebi onde queria chegar e estava explicado o silêncio da turma.
Fiquei ali, face a face, com uma das dúvidas existenciais do presente em confronto com os dogmas do passado. Apressei-me a esclarecer que, no século XII, a confusão de identidades de género não existia. Ponto.
Depois de uma exaustiva contextualização sobre a história e a mentalidade da época medieval, senti o sabor amargo da frustração, mas aprendi uma lição nova.
Nada é garantido. Por mais esforço que se despenda a enquadrar os assuntos no tempo, a acareação entre o passado e o presente pode provocar inúmeros equívocos.
Aqueles alunos, inspirados nos ares do tempo atual, não conseguiram responder a uma simples pergunta. Será legítimo concluir que o mundo hoje atingiu tal grau de complexidade que nenhuma resposta é linear? Não será que questionar a história contribui para a confusão presente? Talvez seja mesmo uma questão de perspetiva, mas esta perspetiva faz toda a diferença. Levantar questões sobre o passado é um dever, não para o destruir, mas para construir o futuro. E aqui está a diferença.
Justamente quando mais se torna necessário que a história seja uma referência para não se repetir determinados erros, a humanidade desata a branqueá-la, recorrendo mesmo à censura como forma de esconder a verdade aos mais “susceptíveis”. Assistimos, portanto, a confusões de toda a ordem, uma ordem que passou a ser tão fluída e difusa, contaminando a prática e o discurso, desde o uso balbuciado de expressões como “descobrimentos portugueses”, até ao derrubar de estátuas de figuras históricas, cuja ação, entretanto, deixou de ser considerada heróica, passando pela vil infantilização de polir certos vocábulos, ora designados de “politicamente incorretos”.
Fora de mão, a violência do mundo atual é uma realidade que ninguém consegue esconder, apresentando-se, todos os dias, aos olhos de qualquer um pelos telejornais. Os conflitos proliferam, a intolerância aumenta, o preconceito revela-se sem pudor.
Afinal, o que se pretende fazer às gerações atuais? Ensinar-lhes a enfrentar o futuro, puxando o brilho ao passado? Ou numa época tão sinuosa, com questões éticas a cada curva por resolver, não será essencial olhar para o passado, dele retirando a experiência e as ilações necessárias para trilhar um melhor futuro?
Pus um ponto final na questão colocada em silêncio pelos alunos. Efetivamente, não tinha de ir por aquele caminho, mas a reflexão foi inevitável. Que referências têm esses jovens como garantidas? Que ética seguem? Que certezas levam para o futuro?
Na verdade, os adultos não podem olhar para os jovens do presente com a memória do seu passado. Têm também de os situar neste seu tempo para os compreender. O mundo que irão herdar não é garantido e isto faz a mais absoluta diferença.
Cabe-nos questionar o legado que lhes deixamos para o futuro. E que futuro?
O silêncio impera na sala.
Vou continuar a ensinar poesia.
Quando se confunde o passado com o presente
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Quando se confunde o passado com o presente
Por Paula Cabral Por estes dias, numa aula de Português, os alunos, ao serem questionados sobre se o sujeito lírico de uma cantiga trovadoresca era feminino ou masculino, mantiveram-se em silêncio.…
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Sobre CHRYS CHRYSTELLO

Chrys Chrystello jornalista, tradutor e presidente da direção da AICL
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