2 poemas desta data noutras eras

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469.1. dia de enganos, abr 1, 1976

 

nesse dia acordou irritado

logo por azar estremunhado

notaria a seu lado

a mulher

morta há dez anos

os ossos espalhados pela cama

pressupunham

aqui e além

um certo descuido

mas que diabo!

voltou-se para a janela

tentando adormecer uma vez mais

invariavelmente o fazia em dias como aquele

foi então

atiraram a bola à vidraça

o quarto ficou estrelado

mil sóis recortavam-se no ladrilhado

esforçou-se por manter a calma

ocultou a face no travesseiro

agarrou a almofada

freneticamente

num esgar sensual

ao longe tiniam campainhas

não havia dúvidas

iria ser um dia mau

decidiu-se a folhear o matutino

recusou-se a acreditar

limpou os óculos

estava lá

sem engano possível

em título de caixa alta

em editoriais se consagrava

o sonho supremo da humanidade

por decreto presidencial

dum senhor que ninguém elegera

ia ser promulgada e publicada

no diário da governação

com força institucional

 

A D E M O – C R A – C I A

 

em termos mui solenes

o governo advertia

dentro de 24 horas

em cerimónia apropriada

nascia a democracia

e zás! nem quis ligar a televisão

quieto e calado tresleu

era demais!

violento choque!

democraticamente

sem se dar conta

caiu para o lado com um baque surdo

morreu na cama

e em jejum

democrata de nascença.

 


469.2. le poisson d’avril, abr 1, 1976

 

 

(hoje, todos os jornais cumpriram

nem uma só mentira se imprimiu

era a verdade toda

a do sonho não vivido

talvez possível

em letras garrafais

 

  • HOJE DIA NACIONAL DE ENGANOS É LÍCITO DIZER A VERDADE –

proclamava o editorial)

a duas colunas no canto esquerdo

a páginas quinze

era minha a foto e o nome

nem me impressionou!

ri mesmo com desprendimento

negra cruz encimava frontispício

dizeres os do costume

a missa presente no corpo do finado

hora a habitual

na residência

o féretro sairia para jazigo familiar

lembram-se de cada!

(claro que me importei quando o padre disse

que ELE me chamara à sua presença)

todos compungidos

choravam rezas e eulogias

vestiam negro

exceto as flores

e as palavras vazias

adivinhei um sorriso dissimulado

nos lábios da viúva

andei por aqui e ali

ouvindo este e aquele

pediam à minha alma

que os libertasse

queriam alívio

disfarcei-me por entre sombrias colunatas

e fugi

 

 

(ainda hoje me procuram!)