CARLOS ENES A GALOPE NUMA NOITE DE BÚZIOS

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A GALOPE NUMA NOITE DE BÚZIOS (6)

O Professor Doutor passeia o título académico pela cidade, num andor levado por quatro patos marrecos. A charanga neoliberal abre o desfile, em estilo de bodo-de-leite rococó, anunciado com foguetório pós-modernista.
Num carrinho de mão, o menino do coro transporta o insuflado currículo. O primeiro capítulo integra dezenas de frases espirituais, publicadas no boletim paroquial, em linguagem para as gerações vindouras decifrarem; o segundo capítulo reúne meia dúzia de artigos, impressos numa revista amplamente aberta a um reduzido núcleo de compadres, especialistas em generalidades.
A sua inteligência mede-se em bazófia e não ao peso, dado que as vogais e consoantes sem substância ficam leves como bolas de sabão. Ideias originais não se conhecem. Especializou-se a citar autores consagrados, estratégia para assegurar credibilidade. Cita Platão (“a chuva que inunda a horta pode dar cabo dos figos”); endeusa Santo Agostinho (“o sol nasce todos os dias, enquanto o mundo não gretar”); trata o padre António Vieira como se tivesse andado a pescar com ele (“Oh peixe vaidoso que nem na brasa perde a escama”), e ri-se com Fernando Pessoa (“no comboio transcendente ia tudo à gargalhada”).
Empavonado, deambula o Professor pelas ruas em constante meditação, citado pela família, necessitado de outras (ex)citações. E ai de quem se lhe atravesse no caminho. Recorre a pergaminhos de progenitores aparentados com D. Duarte, o Eloquente, e utiliza a tesoura do tio alfaiate para a tonsura implacável.
A sua voz é a voz absoluta da parábola ecuménica.
O ponto fraco são os gases estomacais. O mau hálito tanto pode ser provocado pela linguiça rançosa, que ingere meia hora antes de cada prédica, ou então um sintoma do estado avançado da decomposição dos dogmas. Só a autópsia poderá determinar a causa da grande causa que o Professor Universitário não pode deixar de engolir, quando se olha ao espelho e o bafo matinal faz ricochete.

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