A apresentação de um livro é sempre um momento especial e de grande responsabilidade. Embora nunca queiramos desvendar em demasia, é sempre uma tentação levantar o véu e dar a conhecer as peripécias mais interessantes da narrativa, para que o potencial leitor possa também ser enlaçado de imediato pelo universo do autor.
Neste caso em particular, essa tentação chega em dobro, primeiro porque a autora é a Anabela Freitas, uma escritora que já por bastas vezes provou estar entre as vozes mais proeminentes da literatura portuguesa, com especial enfoque – e permitam-me – naquela dedicada à infância e juventude, e depois porque o imaginário trazido até «A Voz da Ilha» é-nos a todos muito caro, já que se debruça sobre os Açores, os açorianos, a história do arquipélago e, sobretudo, sobre a identidade açoriana.
Conquanto «A Voz da Ilha» venha a ser catalogada como uma obra infantojuvenil, ajustada, essencialmente, aos jovens adolescentes, parece-nos que não deverá ser também olvidada pelos mais velhos, pelo público em geral e pelos açorianos, em particular, e isto, porque temos diante de nós um texto que consolida, sobremodo, a ideia do que foi e do que é ser-se açoriano nas ilhas e na diáspora. Este é um contributo precioso para se perceber as mutações que se operam na mentalidade das pessoas que vivem a condição da emigração por necessidade. É um livro sobre nós!
Em concreto, Anabela Freitas serve-nos não uma, mas várias perspetivas da mentalidade açoriana, valendo-se para tal do pensamento e da forma de estar e interagir de três gerações de uma mesma família de emigrantes, marcada de forma indelével pela pobreza ilhoa, e que, nos frios canadianos busca melhores condições de vida, aliás, como sabemos, percurso tomado por milhares de portugueses açorianos e não só.
Ao longo da leitura é notório o profundo conhecimento que a autora detém sobre o arquipélago, para além de muitas das suas especificidades, encontrando-se detalhes assinaláveis não apenas de índole histórica, como também cultural, ambiental, as rotinas ou as festividades da Ilha (sempre escrita com inicial maiúscula), curiosamente uma ilha nunca nomeada, mas que arriscaríamos ser uma das mais pequenas do arquipélago: pouco povoada; muito rural; com uma vila e algumas freguesias. Esta talvez…
Embora não haja muitas referências temporais ao longo do texto, inferimos que o início desta aventura canadiana se situe em meados do século XX, quando muitas centenas de ilhéus se viram atirados ao desespero, se sentiram mergulhados na miséria mais profunda, numa penúria que não chegava para forrar o estômago e tiveram de partir, carregando tristezas, memórias e saudades, mas também esperança numa vida melhor, mais folgada, e que culminasse no regresso então já tão desejado. Partiam rumo ao incerto, com a certeza de que ficar não era solução. Por tudo isto e mais, esta é uma obra que imerge nas raízes culturais, sociais e históricas dos Açores e dos açorianos, que explora a dicotomia entre a necessidade do ir, do partir em busca e o apelo incessante da ilha, do regresso a casa. Ganha voz o telurismo, o chamamento das raízes. Em concreto, Anabela Freitas recria a emigração de um casal que, com uma filha ainda adolescente, parte rumo ao Canadá e lá trabalha arduamente, procurando poupar o máximo para, logo que possível, regressar à terra. Vivem lá melhor do que nos Açores, mas trabalham muito e poupam o que podem, sendo frequentemente apontados por isso mesmo:
“- Éramos nós que tratávamos do jardinzito. Plantávamos alfaces e couves, em vez de flores, o que fazia com que se rissem de nós. Nunca nos importámos com isso, porque poupámos muito assim. Nunca fomos de férias.” (p. 40)
Só aquando da entrada da segunda geração no mundo do trabalho, as coisas começaram a mudar. Com mais dois braços a contribuir para as despesas da casa, as condições de vida melhoraram significativamente.
Sendo um livro que narra uma viagem física, aquela que se dá entre Vancouver e a Ilha, há também aqui lugar a outras viagens, muito mais pessoais e que ocorrem no íntimo de cada um, viagens bem arreigadas aos traços que, em uníssono, formam a personalidade de cada personagem. Viagens demoradas, interiores e com transformações de carácter; há aqui lugar ao abalar de certezas, pela descoberta de novas realidades e pelo alargamento de velhos horizontes; ruem convicções e crenças ante o despertar de novas consciências. Há aqui personagens que, ao longo do mês de estada na Ilha, experimentam tais transformações psicológicas que dir-se-ia que, à data do regresso aos frios canadianos, partem “novas pessoas”, completamente transfiguradas pela Ilha, pelos seus usos e costumes, pelas gentes da Ilha…
Se os mais velhos sentiam constantemente o apelo telúrico, o chamamento da Ilha, se estes eram continuadamente assolados pela saudade e vontade de regressar, esse sentimento vai-se esbatendo nas gerações seguintes e, salvo raras exceções, das quais Ana – a protagonista – faz parte, gradativamente, chamamento ilhéu vai-se esfumando, até que, já numa terceira geração de família emigrante, acaba mesmo por desaparecer. Anabela Freitas explora muito bem esta viagem, que diríamos identitária, onde, pela natural aculturação, se vão perdendo os traços comuns, os costumes e as tradições, “deixando assim de se demarcar” vincadamente diferenças e especificidades, no fundo, “o que alavanca aquilo a que comummente designamos por identidade!”, como outros a designaram.
Com efeito, se os avós almejam o regresso pleno às raízes, os pais já procuravam deliberadamente abandonar usos e costumes (nomeadamente a prática religiosa e a língua) buscando a integração plena e rápida, procurando combater, dessa forma, estigmas e preconceitos raciais e cito:
“Não sei porquê, mas ser filha de portugueses não me parece ser muito popular nesta cidade […]” (p. 5)
Há aqui também lugar à reflexão sobre a forma como eram (ou como são ainda?) recebidos os imigrantes e as diferenças de postura dos locais mediante a proveniência daqueles. Veja-se:
“Parece que os pais dele são de origem inglesa. Também imigraram para Vancouver, mas esses eram de outra espécie de imigrantes: os bem recebidos.” (p. 14)
Como muito bem escreve a autora, e cito:
“Não se é melhor ou pior por os pais terem nascido num sítio ou noutro.” (p.6)
Curiosa frase que se reporta aos comportamentos tidos na segunda metade do Século XX, e que, infelizmente, granjeia ainda hoje tanto significado. Devíamo-nos sentir envergonhados!
No livro, magnificamente ilustrado pelo artista plástico Rui Paiva, e como foi já dito, relata-se uma viagem até à Ilha, e explora-se o impacto que esse reencontro para uns e novidade para outros tem no íntimo de cada personagem. Torna-se, por isso, muito interessante acompanhar as diferenças psicológicas das diferentes personagens, à medida que se vão avolumando as vivências num espaço de onde, efetivamente, vêm as raízes de todos. É particularmente encantador ver como os elementos naturais da ilha produzem efeito na personalidade e comportamentos das personagens: o mar, o azul do céu e do mar, a dureza da terra, a humidade…
“Vou saber esta ilha como sei as minhas mão.” (p.18)
E cito novamente:
“Junto à costa formavam-se cordões brancos de ondas. De vez em quando, uma brisa mais fria vinha levantar-lhe fiapos: pareciam cabelos! Serão os cabelos das sereias? Sim, isto sim: isto é o Mar! Só para vê-lo valeu a pena ter vindo. A avó tinha razão.” (p. 22)
Embora revestida de forte carga subjetiva, a linha narrativa que mais interesse desperta ao longo de todo o texto, é o confronto de opiniões entre as irmãs Ana, a mais nova e Eva, a mais velha. Aliás, é na constatação dessas diferenças de pensamento, sequente evolução e aproximação final das mesmas que reside o âmago de toda esta viagem. Inicialmente em polos diametralmente opostos, Ana mostrava-se entusiasmada, procurando sorver o máximo de informação que pudesse sobre a terra dos pais e dos avós. Por outro lado, Eva sentia aborrecimento em tudo quanto vivenciava, chegou contrariada e a todos respondia com má cara e reparos vários, desdenhava de tudo, por se sentir canadiana, e por ter consciência de que não pertencia àquela “selva” – palavra da autora. Todavia, com o desenrolar da narrativa, há mutações e, enquanto em Ana estas se operam em termos de desenvolvimento da religiosidade, culto e crença, em Eva essas chegam por via do amor, esse sentimento que a todos transforma, e que a fazem relativizar tudo quanto tinha como fundamental na sua vida ainda adolescente.
Este é um escrito rico, e será sempre um texto de viagem, ou de viagens, não apenas ao íntimo de cada personagem, mas também ao pensamento de cada leitor. Chega-nos num registo mais ou menos híbrido, já que combina a diarística com a narrativa de ficção mais tradicional, originando essa alternância de géneros uma vivacidade muito interessante, permitindo, ao mesmo tempo, jogos temporais de grande subtileza, usando-se para tal analepses e/ou prolepses particularmente expressivas.
A «A Voz da Ilha» é, por tudo isto, uma voz que convoca; é uma voz forte que abre fendas na linha do tempo e traz à montra do presente uma estória que, afinal é a nossa História. Esta é uma voz que merece ser lida com o aprumo de todos os sentidos.
(Gazeta de Paços de Ferreira, a 9 de outubro de 2024.)