Crónica do Quotidiano Inútil”, de Chrys Chrystello por NATIVIDADE RIBEIRO

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NOTAS SOLTAS
Pegar assim em 50 anos de vida literária de um jornalista-escritor-poeta, em 2 semanas, neste “Crónica do Quotidiano Inútil”, de Chrys Chrystello, Letras Lavadas, é prova de que muito encantou. E porque as palavras ficam sem palavras para estas palavras imensas de uma vida, fico-me por notas avulsas espontâneas, ao sabor da leitura que se foi fazendo.
— Poesia do mundo, poesia e mundo. Os lugares fazem os poetas, os lugares comem o poeta, o poeta regurgita os lugares. Por estes poemas lugares do mundo e do poeta, revisitei muitos comuns, na minha errância de açoriana. Diz o poeta “Partir!/cortar amarras como se ficar fosse já um naufrágio/ficar como quem parte nunca/partir como quem fica nas asas do tempo/ficar como se viver fosse uma morte adiada/Partir!”
— Poeta caminheiro do mundo, de muitos mundos: políticos, sociais, culturais… Regista-os para não os perder, para não se perder, para os transformar. Diz de guerras, emigração, miséria, o mundo por conta dos poderosos e do amor e do amor… “Em cada minuto de silêncio/Há milhões de gritos de socorro/Por ti ignorados./Entretanto congratular-te-ás/Por teres tido um momento de descanso.”
Também há lugar para a ironia e amargura e esperança “nos elétricos/o último banco-de-trás é incómodo/mas paradoxo/os rapazes tímidos/erguem os olhos do chão//quando entram raparigas erguem os olhos do chão!”
— Reparo no grafismo dos poemas, ocupando a folha (muitas vezes). Não pelo tamanho dos versos, mas, parece-me, porque se (des)ligam e espraiam-se pelo papel — como o poeta de muitos lugares, “planetas”.Como se sempre em viagem ir/vir/vir/ir. Este “desligar” dos versos uns dos outros remete-nos para a errância do poeta irrequieto, obrigando os olhos a ir de um extremo a outro extremo. E neste ritmo dos olhos, a apanhar o verso do início da linha, do fim da linha, nos é transmitido a viagem-vida de inquietação, crispação, mas também de exaltação e canto.
— A ortografia exímia, sem mácula. Feita a correção por olhos não apenas clínicos, mas cirúrgicos pelas letras miudinhas para nelas caber toda uma vida e só, às vezes, se queixam as cataratas. E eis que me cai nos olhos um “caiem”. O “i” como que amparando a queda. E gostamos deste “i”. Ser imperfeito é também ter um lugar no meio da perfeição.
— Pela Ásia, onde vivi, revi cheiros, sabores, quotidianos, “cultos não ocultos e cristãos”, templos e igrejas, o barulho dos panchões e o vermelho com que atepam os chãos. A humidade e o calor sensual. E sobre Macau, o poeta relata a sua peregrinação pela cidade quando a revisita e confessa “para quem lá viveu e sonhou/jamais sonhando regressar/ver macau nova e pujante/foi alegria insuspeitada/dita por chineses em lusa voz//aqui deixo a promessa/perdoa-me/quero voltar.” Para isso bebemos a água do Lilau. Para voltarmos. E se não voltarmos para nunca esquecer. Digo eu.
— No “Planeta Açores”, os poemas não nos contam só a beleza das ilhas e do mar que tão bem conhecemos, mas relembram-nos as origens, os vulcões, a História, as gentes, a literatura, homenageando muitos escritores e poetas da açorianidade.
Olhar do poeta-do-mundo que aterra no arquipélago e adota-o para viver e morrer. Como gostei deste olhar-de-fora-de-dentro. E o poeta promete “Cantarei o arquipélago da escrita/sem títulos nem honrarias/nem adjetivos telúrios/sem versos de rima quebrada/não é açoriano quem quer/mas quem sente.” Noutro poema “Aos açores só se chega uma vez/depois são saídas e regressos/transumâncias/trânsitos errâncias//dos açores não se parte nunca/levamo-los na bagagem/sem declarar na aduana/acessório de viagem/como camisa que nunca se despe//nos açores nunca se está/a alma permanece/o corpo divaga/só a escrita perdurará.”
— A sentir que tanto ficou por dizer, nestas notas soltas. É caso para se dizer “Só lendo!”
N.R.
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