luis filipe sarmento

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Work in progress.
Do meu novo livro, «Commedia».
2.
Um novo milénio é assustador. Ninguém repete a experiência. Nem os alquimistas. E a espiritualidade invadida pela religiosidade das pessoas ressente-se do passo natural do calendário. Os profetas da fortuna e da desgraça chegaram com os seus múltiplos «bugs», acenando medos e tragédias. Nessa transição de século e milénio continuaram a morrer e a nascer pessoas. Das que morreram, muitas não deram pela vida passar por si com toda a sua beleza e generosidade. Das que nasceram, muitas iriam transformar o mundo e a maioria testemunhar o que aos seus pais e avós seria impensável. Um mundo novo que poderia ter tanto de admirável como de aterrador.
Apesar dos astrólogos, sempre profícuos nestes momentos, agitarem a bandeira de grandes mudanças, como se elas não acontecessem todos os dias, propalando a famigerada Era do Aquário, a verdade é que o início do milénio foi estranhamente marcado pelo nascimento de um número elevado de gémeos. E como se viu anos mais tarde, estes gémeos festejavam a liturgia de ser gémeos como se fossem uma nova potência, que levaria filósofos e sociólogos a reflectirem sobre semelhanças e dissemelhanças a partir de uma condição que se estava a revelar como um dado novo e interrogativamente misterioso, alheios à apoteose cacofónica da queda das Torres Gémeas na cidade distraída.
3.
Para além das alternâncias que a vida política e económica defende para o desenvolvimento das democracias, as novas diversidades iriam deixar o mundo num conflito silencioso. O pior dos conflitos. O conflito que massificava paisagens. Paisagens repetidas, reiteradamente gémeas, sem detalhes distintivos, influenciariam, vinte anos depois, uma anti-geração que iria decompor métodos e relações sociais que a História teria dificuldade em registar e arquivar. As paisagens começaram a repetir-se, influenciando igualmente grupos de várias latitudes. A sua comunicação nas redes dark tornara-os espiritualmente gémeos e tudo o que estivesse no exterior dessa uterina plataforma não lhes dizia respeito. Pela primeira vez, uma geração desprezava a história, ignorava-a e aniquilava-a para que a nova estrutura social não fosse contaminada pela tradição abjecta e obsoleta. Passaram por facas afiadas a inspiração, reduzindo-a a um picado hamburguês sem transcendência, uma disfuncionalidade para os seus projectos calculados e calculistas, não dando qualquer atenção às tradicionais, ameaçadoras e ridículas iras divinas. Nem sequer combatiam o que lhes era adverso, desprezavam-no, condenando-o ao pó. Nem sequer se satisfaziam com a ideia de esquecimento dos obstáculos porque essa ideia de olvido não entra no cardápio das suas preocupações. Nem o desprezo era pensado e assumido como uma estratégia de sobrevivência. Desprezavam, sem saber que o faziam, o que não lhes despertava um ínfimo fragmento de atenção. Porque, na realidade, não tinham força de existência nas suas vidas organizadas na excentricidade dos padrões. Desconfiam da espontaneidade festejada nos círculos tradicionais que ainda os envolvem. Reflectem cada gesto e cada passo e têm respostas técnicas e mecânicas para se desviarem definitivamente dos obstáculos que as sociedades lhes vão criando. Quando isso acontece, essas obstruções deixam de existir para que no seu entendimento programado nunca tenham existido. A espontaneidade é congelada nos icebergues que os constituem enquanto corpo social de uma novíssima e misteriosa comunidade que talvez o cinema possa reproduzir desde que seja produzido e realizado por eles como entes indefinidos sexualmente consubstanciados numa nova linguagem de afectos e de amor. Produzem sismos nas suas crateras sociais. Cedem ainda ao facto de serem bilingues. Não pelos idiomas de origem, mas pela comunicação de que necessitam enquanto o seu projecto ideológico e social não for substancialmente maioritário no planeta que querem regenerar. A sua linguagem é a linguagem dark, negra ou obscura à leitura dos seus contemporâneos que ainda vivem sob os padrões do que se entende como cultura ocidental. Construíram o lugar que reivindicaram com veemência. São construtores de encantamentos cujos códigos estão a milhões de anos-luz dos padrões conhecidos. São criptogâmicos. E crêem-se fatais.
Luís Filipe Sarmento, «Commedia», 2022
Foto: José Poiares photography
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Um comentário a “luis filipe sarmento”

  1. Avatar de Maria João Simas
    Maria João Simas

    Guardei.

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